Esmeralda

"Não existe paixão na natureza que seja tão demoniacamente impaciente como a daquele que hesita à margem de um precipício, meditando sobre se há de saltar ou não. Deter-se, ainda que por um momento, na contemplação desse PENSAMENTO, é estar inevitavelmente perdido; porque a reflexão nos ordena afastar-nos sem demora e PORTANTO, exatamente por isso, é que NÃO PODEMOS. Se não houver um braço amigo que nos ampare, ou se não fizermos um esforço súbito para nos afastarmos do abismo, saltaremos e seremos destruídos" - Edgar Allan Poe em "O demônio da perversidade".

O vento forte e frio da mudança brusca de tempo esvoaçava meus cabelos. Eu olhava o manto cinza de nuvens acima da minha cabeça, como quem espera que caia do céu a resolução de um problema. Meu problema era delicado; dotado de uma delicada carapaça, melhor dizendo. Um lobo em pele de cordeiro.

Cíntia passou pela minha vida com a força destruidora de um tornado. A desolação com que me brindou com sua abrupta partida foi aterradora. Contudo, nem as chagas que me sobraram fizeram com que eu esquecesse de seus peculiares melindres e de seus olhos carregados de lasciva suplicação.

E o acaso a trouxera de volta. E ela estava à minha frente, agora mais alta, mais encorpada, mais madura. E totalmente corrompida.

- Um beijo só. - ela diz, intercalando olhares ávidos entre meus olhos e minha boca - Não vai mudar nada. Ninguém vai ficar sabendo. Só um.

Sei que um beijo só é o suficiente para que tudo mude.

Sei que um beijo só é o suficiente para que tudo mude.

Sei que um beijo só é o suficiente para o enclave dos países baixos.

Um beijo só é o pontapé inicial para um suadouro sem fim; com beijos na glande e no cu.

Um beijo só é o suficiente para que eu vire um sommelier de mel de buceta.

- Não vai mudar nada se você me beijar - ela insiste - Só quero um beijo; só. Ela não vai ficar sabendo.

O hiato de muitos meses desde que nos viramos pela última vez até essa situação inusitada me fez um homem decente, assertando um compromisso sério com uma garota bonita, calma e culta. Que, decerto, não merecia o que me era proposto pela devassa que se encontrava à minha frente - apesar da minha capacidade de racionalizar minhas vontades estar ofuscada pelo desejo premente que pulsava no meu baixo ventre.

O vento ficou mais forte e nossos cabelos cacheados e cheios e grandes e parecidos tremulavam impacientes.

- Se você não me beijar em dez segundos eu vou embora e nunca mais nos veremos.

- Se eu te beijar em dez segundos você irá embora e nunca mais nos veremos da mesma forma.

- Não...

- Sim, você disse há pouco que só queria isso.

- Mas eu quero mais, você sabe.

- E o que você quer?

- Você!

- Como?

- Todinho pra mim?

- Pra quê?

- Pra eu poder tirar sua roupa e fazer tudo o que me der vontade.

- Você não aguenta dois minutos de vara.

- Eu acabo com você em cinco minutos.

- A única coisa que você sabe fazer é me deixar voltar pra casa com as bolas doloridas.

- Hoje você pode voltar com elas esvaziadas.

- Sossega.

- Só vou sossegar quando você me comer.

Estamos colados na parede de uma viela em que nos tempos áureos colávamos e nos bolinávamos. Estamos colados, e meu pau, atravessado pro lado esquerdo, encosta em sua barriga. Suas sobrancelhas loiras arqueadas prometem um banquete nupcial sem precedentes.

"Ah, caralho", eu balbucio e olho novamente para as nuvens carregadas.

- Me desculpa - ela diz.

- Pelo quê? - eu pergunto.

- Por tentar te corromper... Isso não é certo.

- É, não é - concordo, vendo as possibilidades de uma trepada que eu queria ter há tempos escoando por entre meus dedos.

A dignidade teria que valer a pena depois que tudo acabasse.

- Eu sei que você quer! - ela diz, parecendo esquecer o que acabara de falar sobre ser minha pretensa corruptora.

- Não quero! - Eu digo, traindo toda a preenchida vascularização peniana que pulsava abaixo. - Não quero! - Eu repito, com nossos narizes se roçando.

Ela surta, de repente. Sempre surta de repente. Enche a mão e aperta com firmeza e eu gemo, e manipulo sua nuca com a ponta dos dedos travestidas em aço.

- Filho da puta, me come! - Ela diz enquanto me arranha, me aperta e tenta me beijar.

Eu sofro. O homem está condicionado a sucumbir a apelos do gênero; não tem jeito. Seria tão mais fácil se ela tivesse um cancro no meio da cara, ou fosse sósia de algum jogador de futebol de nome policomposto. Seria tão mais fácil se o cheiro/gosto de sua vulva não fosse não adocicado, almiscarado; um elixir dos deuses que vinha ao meu paladar apenas através das reminiscências do que vivemos no passado.

Não sucumbo: reúno forças através das imagens da minha companheira e afasto a agente do caos de perto de mim.

- Vai embora. - Eu digo.

Ela não hesita. Fecha a cara e pega a bolsa.

Sinto uma pontada no coração.

- Desculpa. - Ela pede mais uma vez, para em seguida me dar um abraço de despedida e tentar minha boca mais uma vez. Tendo eu recusado, seu tchau foi traduzido em "viadinho".

E sai marchando.

Eu recosto no muro onde ela estivera e fico olhando como ela cresceu. Bunda maior, os ombros com linhas delicadas e extremamente femininas; o vento tentando erguer sua saia; suas pernas torneadas e brancas; seu sapatinho amarelo; suas unhas azuis; o jeito arrogante de dar cada passo largo em direção à saída do Metrô.

Começa a garoar e na minha mente Marc Johnson dá de ombros na terceira parte do Fully Flared; porque começa a garoar quando recoloco os fones no ouvido e está começando a "Us" do She Wants Revenge.

Um fim poético para algo que não começou e acabou de novo.

Sigo meu caminho contra as borrifadas caçoantes de Deus com os tímpanos açoitados as we look at this thing called us com a sensação de uma batalha vencida de uma guerra sem fim contra mim mesmo.

13/11/2011 - 12h00m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 13/11/2011
Reeditado em 13/11/2011
Código do texto: T3333319
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