Sobre avisos e coincidências (EC)

(Exercício - Tema proposto: A morte e a morte de.... )


Os primeiros tempos passados em Pedra das Flores foram diferentes dos últimos. Muito. Pessoas ainda viviam ali e na falta de melhor diversão, como se houvesse, divertiam-se conversando. Nos fins das tardes, reuniam-se nas pequenas varandas, proseando. Ela se lembrava bem de uma dessas tardes que se emendavam com a noite em que o prosear girou em torno da morte. E foi aí que tudo mudou.
Falar sobre a morte é Universal. A morte é Universal. Não existe vida sem morte e nada é mais temido e desconhecido do que ela. Ninguém quer morrer e quando falamos dela falamos como se existisse só para o outro. Cada um de nós vive como se fosse imortal. Eu vivo assim e ela também vivia, bem como todos que com ela passavam as noitinhas contando “causos”

Naquele noite o assunto fora basicamente sobre crendices envolvendo esse tema e foi talvez por isso que ela nunca se esqueceu. Começou quando em uma pausa mais demorada entre um prosear e outro Sá Ernesta sentiu um calafrio e disse:Ela passou por aqui. A pergunta que ela feita, não fez mas estava em seus olhos atônitos era: “Quem?”. Foi prontamente respondida por todos. A morte. Foi ali que ela ficou sabendo que, ao sentir um calafrio sem motivo aparente, era a morte roçando seu corpo, para avisar de sua iminente chegada. Para afastá-la seria preciso que a pessoa que sentiu o calafrio batesse no ombro de quem estivesse mais próximo dizendo: “Sai morte que estou bem forte”.

Sá Ernesta era a mulher mais velha do lugar e se recusou a fazer isso dizendo que se tinha chegado a hora, agora não iria recusar. Vivia com a neta e a bisneta que estavam prestes a ir embora e não queria prendê-las mais ali, embora a neta e todos mais tivessem lhe suplicado que fizesse o gesto que afastaria a morte.
O dia seguinte não trouxe nenhuma surpresa: Sá Ernesta morreu enquanto dormia. A neta a encontrou quando foi até ao seu quarto levar-lhe o café. Sua primeira medida foi sair correndo até os fundos da casa para verificar se tudo estava fechado: a alma não pode sair pelos fundos, tem que sair pela frente. Logo a seguir ela escancarou a porta de frente e foi o aviso para todos: Sá Ernesta tinha morrido.

Aos poucos os moradores restantes do povoado suspenderam suas atividades e ali passaram o dia. Durante sete dias a porta não se fechou e foi com a porta aberta que todas as noites se reuniram para rezar a novena do defunto, para garantir que a alma da finada fosse para um lugar certo e de preferência bom. Não se deseja, nem ao inimigo, que se transforme em alma penada para assombrar os vivos.

Mas as coisas não pararam por ai. Outras situações ligadas a morte foram acontecendo porque, segundo os entendidos, quando uma pessoa morre, logo duas outras morrem também, pois a morte gosta de trabalhar no atacado: não gosta de levar uma alma só, de preferência três de cada vez. Ernestina redobrou os cuidados com a filha, pois tinha certeza de que seria a menina a próxima: quando morre um velho, logo a seguir morre uma criança de sua família para conduzi-lo em seu caminho. Penélope tentou acalmá-la dizendo que isso não passava de crendice sem nenhum embasamento científico. Mas a menina, Tininha, estava um pouco adoentada e a mãe redobrou os cuidados com ela. Além do mais, quando voltaram do enterro da avó, Tininha entrara correndo com os sapatos sujos de terra do cemitério e isso era certo – a morte acompanha quem leva terra do cemitério para casa. E ela, Ernestina, tinha perdido a pérola de seu anel de estimação. A busca por essa pedra levou todos a esquadrinharem não só a casa visitada pela morte, como todo povoado.

Naquela noite, quando a novena terminou, deram por falta da menina e a mãe se desesperou saindo em busca da criança.

Correu até ao quarto em que as duas dormiam, imaginando que a filha, com mal estar, tivesse voltado para o quarto, mas ela não estava em sua cama. Ernestina, já em pânico, correu até ao quarto da avó, onde a encontrou deitada na cama vazia. Deitada e morta. Pois é isso o que acontece: quando um doente muda de cama, morre.

Ernestina não chorou e pediu a todos que não chorassem também: as lágrimas poderiam molhar as asas de seu anjinho e isso atrapalharia o seu vôo para o céu. A própria mãe comandou o enterro: assim que colocaram o pequeno caixão branco na cova rasa, ela pegou um punhado de terra e pediu aos acompanhantes que fizessem o mesmo. Ao jogarem a terra sobre o caixão pediram que Tininha guardasse um bom lugar para todos. Só com um anjinho se pode fazer isso porque
só as crianças têm um bom lugar garantido. Quando ela perguntou a alguém a razão de não terem feito o mesmo com o caixão de Sá Ernesta ouviu a resposta:Ah, quem podia garantir que ela iria para um bom lugar? Afinal tinha sido uma mulher muito má quando mais jovem, inclusive colocando para fora de casa a mãe de Ernestina, que engravidara de um fazendeiro casado da região. Apesar de ter se arrependido e criado a neta com todo desvelo, aceitando inclusive da neta, o erro que não aceitara da mãe, quem poderia garantir o lugar que estava reservado para ela?

As pessoas do povoado só se tranqüilizaram quando, no sétimo dia da morte da velha, tiveram notícia que um empregado da fazenda vizinha tinha morrido enquanto pescava com mais dois amigos, no rio povoado. Não se pode pescar de três, quando isso acontece, uma cobra pica um, que morre. Mas agora pelo manos a onda de mortes tinha acabado, no povoado.

Penélope estava relembrando essa história quando olhou para o chão e viu a terra espalhada no assoalho, a terra que tinha trazido do cemitério em que enterrara o irmão. Ao mesmo tempo sentiu um calafrio inexplicável e observou que havia perdido a pedra do seu anel.



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