A Negra

Ela não era bonita, mas tinha uma aura que resplandecia quando passava em frente ao bar do Azevedo.

Um metro e sessenta; cintura fina, ancas largas, seios redondos proporcionais às formas.

A Negra, como era conhecida, não tinha nome, tinha personalidade. Quando passava às sete e meia da manhã, para trabalhar era o que todos supunham, ostentava um brilho vindo do seu íntimo, ofuscante. A boca carnuda que se abria num cumprimento sedutor “Bom Dia”, “Boa Noite” ou um breve aceno com a cabeça. Usava argolas enormes, parecendo rasgar a orelha delicada.

O cabelo? Raspado, também podia ser comprido, crespo, duro, liso, trançado ou num rabo de cavalo... Não importava a moda, mas o sentir-se bem com a aparência.

Azevedo abria o bar bem devagarinho olhando para o final da rua esperando para vê-la. Não era amor nem desejo que o paralisava, apenas sentia algo quando seus olhares se cruzavam, e rebolava nos seus pensamentos algo indescritível.

A Negra morava sozinha numa casa que se parecia com a dona, misteriosamente envolvente. Ouvia discos de vinil, embora todos soubessem que não passava dos trinta anos de idade. Se ouvisse NEGUE de “Maria Bethânia”, estava triste. Quando gritava o refrão com Caetano Veloso de “Alegria, Alegria”, Azevedo arrepiava-se não sabia explicar o motivo.

À noite quando a Negra chegava, o bar do Azevedo se preparava para fechar, ele protelava, queria vê-la. Sabia detectar algum problema, se a bolsa era arrastada pela alça, os ombros baixos como se o fardo estivesse por demais pesado, Azevedo preocupava-se. Imaginava os braços firmes envolvendo os ombros caídos. E a tristeza aconchegando-se no seu peito.

A Negra mal o enxergava, não havia olhares nem sorrisos, somente passadas inseguras de encontro ao chão pedregoso.

Mas alegria a fazia flutuar, os seios empinavam e a anca deslizava dentro do vestido justo. A Negra brilhava de encontro ao luar mesmo que estivesse escondido entre as nuvens escuras da noite.

Azevedo vibrava inteiro, fervia por horas, o coração jogava-se com fúria contra as paredes do peito. Empolgava-lhe a ideia de ser ele a causa do riso naqueles lábios de ameixas.

Mas um dia apareceu um estranho, fazendo perguntas sobre os moradores. Na verdade Azevedo percebeu um disfarçado interesse nas pessoas, queria saber da Negra. Assim que a viu passar esqueceu-se dos outros, falava dela como se a conhecesse bem.

Azevedo quis alertá-la, mandou um guri até sua casa, esse gritou do portão por duas vezes. O som estava alto, Caetano Veloso cantava, o vento trouxe a melodia até o bar, ele sacudiu a cabeça preocupada, “porque isso lhe parecia um mau sinal”?

“Negra, tem um estranho perguntando por ti no bar do Azevedo!” Disse o guri, ela esboçou um sorriso triste, agradecida, e deu umas moedinhas a ele.

O dia se arrastou com o sujeito entupindo-se de torradas com leite quente. Puxando conversa com um e outro, tentando trazer Azevedo para a prosa. Esse, arredio, tentava ocupar-se com um pano limpando o balcão. O coração esmagado, a voz trêmula mal conseguindo dizer aos fregueses “Pois não”! Os olhos grudados no final da rua...

O relógio parou às três da tarde, a Negra precisava sair, o estranho pediu um PF, Azevedo pensou em negar já passava da hora do almoço. Costumava ser rígido com os horários, no entanto podia ser a desculpa que o mantinha alí. Descartou logo depois, não era esse o motivo... Ele comeu, pagou, esfregou a barriga grosseiramente satisfeita e saiu. Ao invés de ficar aliviado, Azevedo começou a suar frio, a Negra não apareceu para comprar refrigerante, nem mandou o guri pegar.

Fechou o bar mais cedo, apreensivo, caminhou a passos lentos até a casa dela. Caetano Veloso cantava pela quinta vez “Alegria”, disse um vizinho que estranhou.

Um vento frio levantou a cortina de renda da janela, a porta rangiu numa tristeza cortando Azevedo por dentro.

A Negra sumiu e nunca mais se ouviu falar.

RÔCRÔNISTA
Enviado por RÔCRÔNISTA em 02/06/2011
Código do texto: T3010224
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.