As artimanhas do burro preto

O burro preto não era tão burro assim. Também não era tão preto para fazer jus ao nome. Digamos que era castanho com uma faixa de pelagem escura escorrida por sobre o dorso, desde o pescoço até a anca.

O danado era cheio de artimanhas. Manso e dócil. Mas possuía uma grave mania: detestava cachorros e crianças.

Para apanhá-lo no pasto dava uma tremenda mão-de-obra. O quadrúpede quando percebia a proximidade de alguém com o cabresto na mão, arregalava os grandes olhos pretos, fitava o cidadão, ficava de orelhas em pé e partia desabalado pelo pasto, relinchando e distribuindo coices ao vento, a torto e a direito.

Após pregar uma canseira danada no seu perseguidor e ser apanhado, encabrestado e ter o arreio colocado por sobre o lombo, comportava-se como um burro “gentleman”.

Ele tinha lá seus dias de mau humor, como aquele no qual eu e meu pai (que Deus o tenha em justo e merecido cantinho) levávamos a boiada da Fazenda Itajubá, gerenciada pelo velho, ao lugarejo de Três Braços, onde passaria uma temporada. Eu montado no burro preto e meu pai na mula cigarrinha. Ainda garoto, imberbe, adorava participar dessas invernadas. Era o verdadeiro adulto precoce.

Tangíamos a boiada, (cerca de cem cabeças) debaixo de um sol escaldante. As reses seguiam as picadas como formigas gigantes no carreiro. E lá íamos nós entoando intervalados aboios, atendidos pela manada obedecendo como um filho ao pai. Inesperadamente o velho chicoteou a anca do burro. O animal instintivamente deu uma upa me arremessando para o alto indo eu cair escanchado no seu pescoço. Como tábua de salvação segurei em suas grandes orelhas e, para minha sorte, o danado não esboçou qualquer reação mais violenta.

Ufa! - Desabafei.

Apeei do pescoço do animal e respirei aliviado. Montei novamente e seguimos nossa exitosa jornada, sem qualquer outro contratempo.

Noutra feita, eu e Hélio - um amigo de infância - fomos pôr a sela no tal burro para buscar o gado no pasto e apartar os bezerros das vacas leiteiras. O amigo ficou na frente do quadrúpede, segurando-o pelo cabresto, enquanto eu colocava o arreio. Coloquei o baixeiro por sobre o lombo do animal e a sela por sobre o baixeiro. Passei a ponta da cilha dentro da fivela e apertei forte, comprimindo o seu ventre.

Como disse o burro preto não gostava de criança. Tampouco de cachorros, principalmente se estivessem próximos a ele no momento do encilhamento.

Coitado do amigo!

Quando arrochei a cilha, o animal, inopinadamente, desferiu uma violenta patada na caixa torácica do garoto, que caiu de barriga pra cima. Em seguida tascou uma violenta dentada na testa, fazendo o sangue jorrar e cobrir o seu rosto de vermelho.

Diante da inesperada reação pensei que o solípede tivesse perdido o juízo. Como se ele possuísse essa faculdade. Larguei o companheiro lutando para se desvencilhar do animal e saí desembestado - de venta acesa - em busca de um adulto para salvá-lo. Felizmente, apesar do tampo arrancado na testa, Hélio conseguiu escapar da investida do animal.

Voltamos a montar “ene” vezes no burro preto, que apesar das inusitadas reações era bastante dócil. Um primor de animal.

O amigo cresceu, tornou-se adulto e passou para uma melhor, levando consigo aquela marca indelével incrustada na fronte.

Valmari Nogueira
Enviado por Valmari Nogueira em 08/01/2011
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