Até as galinhas sabiam...

Sô Joaquim Ambrósio nasceu, cresceu, casou, teve filhos, netos, e nunca transpôs os limites da pequena Vila das Quaresmeiras, seu torrão natal, onde passou toda sua benfazeja vida cultivando simpatia e cativando amigos.

Levantava bem cedo e atrelava o balaio ao burrico General, amigo fiel, transportador oficial de sua preciosa mercadoria, constituída toda ela de algodão doce, cocada, pé-de-moleque e bala de bico. Saía com o sol, fazendo soar sua esganiçada buzina por quanta sorte de vielas possuía o povoado, do qual já conhecia cada um dos paralelepípedos tortuosamente assentados pela benemérita administração municipal, cuja benemerência, a bem da verdade, a grande maioria dos moradores botavam em questão, nas acaloradas conversas nos botecos ou em furtivos sussurros pelos becos convergentes. Politicagens à parte, Sô Joaquim Ambrósio não falava mal do prefeito nem das suas polêmicas obras públicas, que afinal de contas, dizia, ele mesmo ajudara a sentar o homem na cadeira da prefeitura.

Margeava essas sortes de assuntos, mantendo-se impassível aos fuxicos e futricas do povo, preocupando-se antes em anunciar, algumas vezes em cantoria arrastada, outras aos berros, suas doces preciosidades:

_’Aúúú argudão doci! Baianinha brancaaaaaaa! Baianinha morenaaaaa! Péééééé di mulequi docinhuuuuu! Bala di biiiiiiiicu, gostosa i vremeinha!’

A meninada acorria em grita cheia e farta balbúrdia ao toque de sua buzina, e com tão incontida ansiedade, que os irmãos Griim chegavam a remexer os ossos nas tumbas, ardendo de despeito ao saberem a flauta mágica do famigerado Flautista de Hamelim, relegada ao segundo patamar do pódio na apuradíssima predileção auditiva da petizada.

O dinheiro que auferia com a venda das guloseimas era mais que suficiente para complementar o sustento da família (a esposa e cinco netinhos que criava em favor dos filhos, que tentavam a vida na capital), pois o grosso dos gastos saía de sua aposentadoria como lavrador, profissão que exerceu por trinta e oito anos consecutivos, com infalível frequência diária.

Só continuava a trabalhar com a venda dos doces, porque, como ele próprio dizia, não sem um certo tantinho de desprezo na voz, ‘num era homi dadu a passá u dia di pijama i chinela, estorvanu a lida da patroa i si atrupelanu cus mininu i cus cachorru pela casa, i muintu menu ainda, apriciava di ficá joganu dama cuá cacaria disocupada na pracinha da igreja’.

Enfim, Sô Joaquim Ambrósio era um homem bonachão, simpático, e o retrato genuíno de um matuto feliz e realizado em seus parcos anseios. Sua alegria nata lhe agraciara com a felicidade de contar com a estima de todo o povoado. Não obstante, viviam debochando, pelas costas, é claro, de seu eterno espírito nômade. Longe de seus olhos (e ouvidos), citavam-no como Sô Joaquim Cigano, alcunha que, muito embora não conhecesse e jamais granjeara, adquirira sem o saber, por ter o hábito, jamais esclarecido se por necessidade ou mera mania, de mudar-se frequentemente de morada.

Dona Candoca, assim que entrava numa nova moradia, sabia de antemão que não conseguiria colocar todos os apetrechos em ordem antes que o marido chegasse num belo e ensolarado dia, sempre pelo terreiro da cozinha, arrastando as botinas no seu passo de catitu fora da manada, interrompendo o sagrado ciscar das galinhas que cacarejavam esbaforidas, e anunciasse solenemente a já velha e conhecida 'boa nova':

_’Candoca, meu ôro, avia di ajuntá as trôxa nu perpassu da semana qui nóis muda nu dumingu’.

Dona Candoca suspirava conformada. E dá-lhe uma semana inteira ajuntando tralhas daqui e badulaques dali, e amarrando trouxas de cá, e buscando lata de flor d'acolá, entre o preparo do almoço pela manhã, o despacho dos meninos para a escola ao meio do dia, e a lida no tanque à tarde. Nessas ocasiões de mudança, Sô Joaquim Ambrósio voltava da praça e entregava à esposa a féria toda do dia, que ela guardava no bule de louça da cristaleira. Esse dinheiro serviria para o custeio do também habitual almoço de comemoração da ‘casa nova’, que, invariavelmente, era um casarão antigo e caindo aos pedaços.

E assim vivia feliz e alheio ao girar do orbe, o pacato Sô Joaquim Ambrósio, casado com Dona Cândida Silveira Ambrósio, pai de quatro filhos e avô de cinco netos, aposentado, lavrador de profissão, e vendedor de guloseimas por ofício.

Se os mexericos do povo a respeito de sua alma nômade eram exagerados, não se sabe ao certo, porém, fato é que Sô Joaquim Ambrósio, que não dava lá muita bola às artimanhas do inexplicável, jamais contou a alguém que em todos os domingos marcados para dia de mudança, quando pulava da cama e rumava para a bica na finalidade de lavar o rosto, topava as galinhas no terreiro, já todas apeadas do poleiro, deitadas com as costas no chão, e com os pezinhos juntinhos e voltados para cima.

Aleki Zalex
Enviado por Aleki Zalex em 08/12/2010
Reeditado em 16/07/2014
Código do texto: T2659681
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