A VERDADE NA PONTA DA AGULHA
Ela, pacientemente, fazia seu crochê. A idade deu-lhe o tempo necessário para desenvolver seus trabalhos manuais. Exímia no ofício criava, ela mesma, seus esquemas que encantavam a quem procurava pelo seu ofício. De suas ágeis mãos brotavam caminhos de mesa, toalhinhas, rendas e milhares de outras mimosuras que sua mente fértil teimava em produzir.
Era conhecida como a melhor crocheteira da região e, desde que ficara viúva, recolhera-se à sua cadeira de balanço e passava os dias a produzir sua arte.
Quando moça desejara ser artista de circo. Apaixonou-se por um equilibrista e na noite em que imaginara deixar a casa para revelar a ele sua paixão, soube que o circo já havia deixado a cidade e partido para bem longe. Perdeu, assim, aquele que poderia ter sido o grande amor da sua vida. Conformou-se com a sina e daí em diante só imaginava um casamento por conveniência. -O pai lhe acharia um bom candidato-, pensava!
E foi o que aconteceu. Casou-se. Vieram os filhos, dez ao todo, e, com eles, distraiu-se das dúvidas e do passar do tempo. Nem percebeu a vida célere correndo e o adiamento infinito de seus mais íntimos sonhos e ambições. Abdicou deles e cumpriu seu amoroso papel de dona de casa, mãe e esposa. Perfil correto para as mulheres de seu tempo. Afinal, era uma dama! E sua verdade tinha de ser a da sociedade!
Somente agora, na sua cadeira de balanço é que se dava o direito de sonhar... E como sonhava! Sonhos jamais imaginados pelos seus circunstantes! E com eles se vingava de uma existência de marasmo e culpa. Culpa de não ter se arriscado mais, vivido mais, sofrido o que tivesse que ter sofrido caso tivesse sido mais corajosa.Ninguém jamais imaginaria que tantos sonhos habitavam a mente daquela velha senhora que cantarolava e murmurava tanto, que ninguém mais lhe dava atenção.
Certa vez a vi deixar escapar uma frase estranha enquanto fazia seu trabalho:-
-Desculpem-me, mas agora vai ser do meu jeito!
Tempos depois me contaram que havia sido encontrada morta, em sua cadeira, com um enigmático sorriso emoldurando seu semblante. Em suas mãos, ainda segurava seu último trabalho: um pedaço de renda onde tecera sua última mensagem:
EU NUNCA DESISTI!...
07/10/2010
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Na Ponta da Agulha
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