RUBRO

Rubro

Ela sorveu mais um gole de vinho, rubro como sangue, pensou consigo.

Há quanto tempo esperava por aquele momento?

Longos dezessete anos.

Dezessete anos, sem vida própria, sem paz interior.

Somente aquela dor a lhe ruminar o coração, dia após dia, mês após mês, ano após ano.

E tudo que teve que ouvir de seus “amigos”, para deixar o passado no passado e tocar a vida adiante.

Ela bem que tentou e como gostaria de ter conseguido se desvencilhar de amarras invisíveis que lhe tolhiam a vida.

Perguntava si mesma como esquecer o passado se nunca tivera vida no presente, presa a dor de ter sido enganada, usurpada e traída pelo único homem que amou em sua vida?

Como fora estúpida e ingênua, mas na época contava com dezesseis anos e o que se sabe da vida, do mundo e da capacidade do coração humano com dezesseis anos?

Enquanto balançava lentamente a taça recordou-se daquela tarde de agosto, ela nunca esqueceria.

Uma tempestade desabara sobre a grande metrópole, deixando o céu “castanho” como na melodia e castanhos também eram seus olhos.

Olhos de ébano, pele alva feito neve, cabelos negros como as noites sem luar.

Por quanto tempo seus olhos se cruzaram, trinta segundos, talvez bem menos, mas naquele instante ela teve toda a certeza, ali estava o ser por quem sua alma apaixonada havia esperado oceanos de tempo.

Ela olhou para o relógio, ainda tinha tempo, tempo até demais para deferir o golpe certeiro e fatal. Vingança!

Rememorou sua mãe dizendo-lhe o quanto tal sentimento era perigoso e corrosivo e quase sempre se voltava a quem a perpetuava.

Ela, porém, dava com ombros e com o passar dos anos discordava totalmente das recomendações da mãe. Pois se havia se reerguido em meio aos escombros e se refizera foi somente pela certeza absoluta daquela palavra: Vingança!

Voltou mais no tempo, e se viu ainda jovem e apaixonada, totalmente entregue aquele sentimento avassalador.

O namoro foi bem visto por toda família. Sim ele tinha algo em seus olhos capaz de enfeitiçar a todos e todos realmente caíram no encanto.

Em poucos dias um jovem rapaz da periferia saia de seu mundo periférico para adentrar ao mundo dos então “novos ricos”, largou o emprego de Office boy para se tornar o braço direito nas empresas da família.

Era sua culpa, colocara no seio de sua amada família uma serpente vil e ardilosa.

Levantou-se, andou pela sala, estava um tanto ansiosa, um tanto impaciente, sorvia cada gole de vinho num misto de amor e ódio.

Possuía como por martírio uma fotografia um pouco desgastada pelos anos. Reviveu a noite de seu noivado, a noite que considerou a mais importante de sua vida. Os beijos, e as caricias no momento em que ficou a sós a entrega, que para ela não tinha sido de corpo, mas de alma.

Teve o ímpeto te rasgar a fotografia em mil pedaços, conteve-se, era ele que ela rasgaria em um único e certeiro pedaço.

Durante todos aqueles anos, mesma após a notícia de que estavam falidos, que havia sido traída e com a descoberta inesperada de uma gravidez que em breve se tornaria mais um fardo para sua alma, acompanhou tudo de longe, cada movimento.

Ele roubara sua família, traindo a confiança depositada, tinha em mãos papeis que lhe davam total liberdade para execução dos negócios da empresa.

E com isso numa bela manhã estavam sendo notificados que nem a casa, a empresa, os carros, nada mais lhe pertenciam.

Enquanto o pai quase enfartava, ela subitamente voltou uma noite antes, no qual se tornaria seu último encontro com o grande amor da sua vida.

Ela pulsava de alegria, pois levava em seu ventre o fruto do que ela acreditava ser amor. Imaginava acariciando a barriga, que seria uma linda garotinha, com a pele alva e os cabelos negros como os do pai.

Voltou a realidade tocando com as mãos o ventre, nunca poderia ser mãe, era o castigo Divino por seu crime.

Sentou-se novamente e desta vez chorou copiosamente, passando pela mente de seus pensamentos o desenrolar dos acontecimentos.

Viu-se abrindo a porta do apartamento do noivo e foi em direção do quarto, a porta entreaberta lhe deu meia visão do que quase lhe fulminou naquele momento, na cama o noivo com outra, rindo, se amando. Escancarou a porta e se fez notar.

Ele somente despachou a amante sem muito alarde, por fim em meio à lagrimas ela balbuciou: “Estou grávida”.

O que ouviu como resposta foi pior que a própria morte.

“Não me interessa. Nem você, nem sua família e nem esse criança e, por favor, devolve-me as chaves.”

Saiu atordoada, anestesiada. Somente na manhã seguinte ela entenderia tudo.

Um golpe muito bem orquestrado, ele levara sete anos para arruinar seu mundo.

Bem agora depois de dezessete anos, ela esperava levar pelo menos sete segundos para acabar com o dele.

Enquanto ele sumia com todo patrimônio de sua família, ela adentrava numa clinica com a única amiga que lhe restou depois que seu dinheiro acabara, para tirar de seu ventre o fruto de um amor desvairado que arruinara não só a ela, mas todos os seus entes amados.

Não sabia dizer o que doeu mais, a dor física ou a dor moral. Porem nunca mais foi a mesma, era como se um espinho tivesse cravado no mais intimo de seu ser, sangrando incessantemente.

Tornou-se intimamente um farrapo humano e por fora uma bela atriz.

Com o passar do tempo descobriu o paradeiro de seu algoz. Ele havia se casado e tinha filhos. Lembrou que amaldiçoou os filhos, a ele, a suposta usurpadora de sua felicidade.

Sim, no fundo ainda o amava tão desesperadamente como no início e passou longas noites esperando ele bater a sua porta, lhe rogando perdão, fato que nunca aconteceu o que fez o amor doentio se tornar ódio e uma obsessão em destruí-lo sem que houvesse meios dele sequer se reerguer.

Enfim ela havia se tonando uma bela mulher. Estudada, bonita, muito atraente e usaria dessas qualidades para atrair sorrateiramente sua presa.

Com a profissão que tinha foi fácil descobrir muitas coisas sobre seu ex noivo.

Descobriu que além de ladrão, mau-caráter, ele era também um tremendo cafajeste que traia a esposa com muita facilidade com qualquer rameira que lhe desse um pouco de prosa.

Entretanto ela tinha um trunfo o conhecia, sete anos foram suficientes para desvendar o lado vaidoso e orgulhoso de seu ex amado usaria de sua fraqueza e na hora certa lhe cobraria cada lagrima e noite mal dormida.

Numa noite foi de encontro a sua presa em um bar onde ele freqüentava quase todas as sextas-feiras.

Pode perceber o burburinho quando ela chegou sim ela havia caprichado muito no visual, mas os galanteios alheios não lhe interessavam ela tinha um alvo e foi em sua direção. Sorriu meio matreira, o homem a sua frente tinha os cabelos prateados, ação do tempo, mas ele continuava um homem muito bonito.

“Idiota, ela pensou consigo. Se acha mesmo o irresistível!”

Passou à noite conversando, trocando olhares repletos de volúpia, acariciando as mãos, o rosto, como ma gata ela o radiava ,roçava e se afastava. Por fim ele sussurrou em seu ouvido: ”Eu quero você, vamos sair daqui!”

Teve vontade de esbofeteá-lo, mas tinha algo muito maior a realizar e nada nem ninguém lhe desviaria de seu objetivo final: Se vingar!

Conseguiu escorrer por entre seus dedos como areia que escorre por entre as mãos, o que o deixou ainda mais excitado. Marcou um encontro para daqui quinze dias, alegou uma agenda profissional sem brechas, ele envolvido como estava se deu por vencido e concordou.

Agora era colocar em prática tudo que havia arquitetado durante anos. Arranjou um local discreto no centro da cidade, contratou uma garota de programa, essa era parte que lhe incomodava um pouco, por fim pensou que alguém inocente teria que ser sacrificado. De certo não seria ela, pois se achava por demais injustiçadas pela vida.

Caprichou na decoração. Muito vermelho. Vermelho como a paixão, vermelho como o vinho, vermelho como sangue, sangue que escorria ainda de seu coração.

Esmerou-se na sua produção pessoal usava um lindo vestido aveludado, as madeixas longas e rubras caiam como cascatas sobre os ombros e costas, as unhas, bem pintadas, os lábios carnudos maquilados de vermelho.

Escolheu esse tom para ser o tom de sua vingança, no fundo era até poético, romântico.

Foi andando até o quarto, olhou para cama, repleta de pétalas de rosas como em sua primeira noite.

Pegou o celular, falou breve.

“Esta na hora pode vir”!

Foi o tempo suficiente de a campainha tocar. Abriu a porta com os olhos ávidos feitos ave de rapina, teve a certeza que estava estonteante somente pelo olhar que recebeu.

Não houve como evitar, ele a tomou de supetão pelos braços e a beijou.

Quanto tempo esperou por aquele beijo e aquele beijo a quase fez desistir de tudo, mas foi somente um quase.

Adentrou ao pequeno apartamento, ele realmente ficou boquiaberto com toda aquela decoração, se sentiu o homem mais importante do mundo, orgulho e vaidade, é ela havia acertado o alvo.

Ele se aproximou perto demais para ela quase fraquejar, esquivou-se entregando com um sorriso uma taça de vinho, em seus pensamentos o ódio e a recordação de tudo que ele havia causada a ela e a sua família. “Você me tirou tudo, mas eu me reergui, agora eu vou tirar tudo e um pouco mais de você e não haverá meios de reverter nada!”

Ele bebeu o liquido demonstrando prazer, nem percebeu o que havia no fundo da taça.

Conversou um pouco, quando ele começou a se sentir um tanto zonzo, ela já esperava por tal reação, levantou e pegando-o pela mão foi conduzindo em direção do quarto. Ele sorriu satisfeito embora seus olhos estivessem começando a pesar demais para uma taça e meia de vinho.

Debruçaram sobre os lençóis de cetim, as pétalas de rosas, ela deixou-se beijar, seria sua despedida, o beijo se misturou com algumas lagrimas e ela mais uma vez quase desistiu quando a campainha soou e a salvou de si mesma.

“Pode entrar, ele já está no quarto, como combinamos de tudo que ele merece!”

Enquanto a jovem seguia em direção ao quarto ela deu uma ultima olhada em tudo, olhou para o relógio, falou par si mesma: ” Em breve ela estará aqui e tudo estará consumado.”

Ela deu meio giro e saiu, porém como é o destino, estava na porta do prédio quando houve um pequeno esbarro, a outra olhou como se mesmo depois de tantos anos a reconhecesse, mas foi tudo muito rápido, ela por si deu um sorriso malévolo e prazeroso ao perceber nos olhos de sua antiga rival, um olhar cheio de raiva e ódio, notou que ela tinha nas mãos algo que lhe pareciam um bilhete muito amassado. Naquele momento sentiu-se plena e poderosa. “Isso, sinta muita raiva e suba logo você não imagina o que lhe aguarda.” Esse foi seu último pensamento, cada uma seguiu seu rumo.

Dormiu como não dormia há anos, sua mãe com certeza a repudiaria, mas ela se sentia bem, muito bem.

Fora de seu personagem, ela retomou sua rotina. Guiou seu carro tranquilamente até o centro da cidade onde ficava a redação do jornal em que trabalhava.

Nem bem chegou foi chamada por seu editor.

_Bom dia Felícia, temos um caso que somente sua habilidade poderá dar um tom fenomenal! Duplo homicídio, a esposa pegou o marido com outra. Aqui está o endereço, já falei com o detetive encarregado do caso. Você terá livre acesso a cena do crime.

_ O que tem demais num crime passional para que eu o torne fenomenal chefe?

_ Dê uma olhada nessa cópia de um bilhete achado no local do crime e Felicia eles foram mortos a golpes de um punhal banhado a ouro, que não pertenciam a a esposa traída.

Ela pegou o bilhete como se não o reconhecesse.

_Foi impresso, tem alguma digital?

_Não, nenhuma, profissional demais.

Leu a frase e quase sorriu: “ESTOU VINGADA!”

_Poderia ser armação?

_Chefe, sinceramente o que esses dois tinham demais para alguém arquitetar uma armação para culpar uma esposa traída? Provavelmente ela imprimiu o bilhete.

_ È você tem razão, mas vá logo sei que você saberá fazer disso uma boa matéria!

_ Ah chefe, isso pode ter certeza, tenho até a chamada da matéria: “Vingança, é um prato que se come cru?”

Fabiana Ferreira Lopes
Enviado por Fabiana Ferreira Lopes em 14/07/2010
Reeditado em 14/07/2010
Código do texto: T2377489
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