DOIS CONTOS

           
Hoje, meu aniversário e se aproximando o dia oito de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da minha ITIÚBA, lembrei desta passagem que aconteceu na minha adolescência e vou contar pra vocês. Espero que gostem.
A situação na nossa casa e nas outras também, não estava fácil. Um tostão que saísse, faria uma grande diferença em nosso orçamento.  Apenas seu Jovino, não atravessava uma fase tão ruim. Era aposentado, era econômico, de modos, que dificilmente ficava à deriva. Eu tinha o privilégio de ser seu amigo. Considerava ele como meu segundo pai. Não gostava de "protestantes", talvez fosse esse o motivo de me chamar Joãovazinho, em vez de Geová, o meu verdadeiro nome, e como todos me conheciam. De vez em quando me dava duzentos Réis, ou mais, ou menos, para minhas farras. Meu pai não ficava satisfeito com isso, pois nos ensinou a não pedir nada, a ninguém. Mas nesse caso, não era eu que pedia, seu Jovino dava com a maior boa vontade.   Fora isso, só abria aquela mão, pra saudar as pessoas. Mão fechada que era, se não tivesse nascido na roça, se não tivesse se criado pras bandas de lá, onde nem escola tinha, se não fosse naquela época, se... Se não fosse os "ses", seria diretor de banco. Ele, até que de vez em quando, tirava algumas cédulas de debaixo do colchão e emprestava. Mas era a juro. Então é possível presumir qual seria a sua posição, se fosse numa situação diferente. Pois bem, não era ainda o caos, mas... nossa criação era pouca, as vaquinhas de leite, magrinhas, coitadas. A lavoura só produzia se chovesse e se chovesse, também as vaquinhas produziriam mais leite, se (de novo os "ses") produzissem mais leite, a produção de requeijão, seria maior e claro o dinheiro começaria a aparecer. Mas, naquele ano e noutros anteriores a chuva, não quis nos visitar. E naquela semana, eu precisava de uns trocados, um dinheirinho bom. Era dezembro e no sábado dia oito, teria a festa de Nossa Senhora, padroeira da cidade. Toda a comunidade estaria presente, eu não poderia perder, mas não poderia ir sem dinheiro. Como poderia pagar refresco e arroz doce para as moças com quem puxaria conversa. E conversa vai, conversa vem, quem sabe não sairia um namoro. Eu já me achava na idade de namorar e vivia há muito tempo de olho em Dolores, uma menina muito bonita. E ela também correspondia ao meu olhar. Na festa eu teria a chance de chama-la para uma conversa. E conversa vai... muito embora isso pudesse gerar uma inimizade entre nossas famílias. Fato muito comum naquela época (acho que ainda hoje), nas bandas de lá. Tia Luiza, costureira oficial da nossa comunidade, tinha costurado para mim uma roupa que me deixava com um aspecto de "rapaz". O trabalho dela ainda não tinha sido pago, mas ela não estava com a corda no pescoço, era compreensível, sabia da nossa situação de modo, que esperaria as coisas melhorarem. Sapato eu iria usar o do meu irmão, que estava com "dordolho", não poderia ir. Embora meu pé fosse menor, isso não me incomodava, muito pelo contrario, pois fazia com que eu parecesse grande. Bom, só me faltava o principal: o dinheiro. E isso estava tirando meu sono. Na roça, se faz as refeições é cedo. Quando se é adolescente, parece que se sente mais fome que os adultos. E se esse adolescente passou a noite acordado aí não tem comida que farte. Pela manhã, um cheiro de cuscuz de milho, misturado ao cheiro de café, invadiu meu quarto. Levantei! Por uma nesga que tinha abaixo da taramela vi minha mãe no tabuleiro mexendo requeijão. Sem lavar os olhos, sem mesmo escovar os dentes. Fui pra lá. E ela, adivinhando minha preocupação (mães, sempre adivinham), chamou-me pra perto do tacho e com ar de quem tinha achado a solução, disse: por que você não pede emprestado pro seu Jovino? Ele é seu amigo, talvez não cobre juro, nem estipule prazo para pagar. Quando vendermos a sua leitoa a gente paga pra ele. Entusiasmei-me com a idéia. Até ensaiei como seria a abordagem, como seria o modo de pedir. Tomei um banho rápido, um café às pressas, abracei minha mãe e me mandei pra casa do meu amigo. Seu Jovino me saudou como sempre: um aperto de mão e um abraço forte. Antes que eu tomasse a iniciativa ele já bombardeou: você veio me pedir dinheiro emprestado, não foi? Concordei envergonhado e com quase certeza e frustração, de que ele iria negar. Porém, ele me perguntou: de quanto você precisa? Fiquei em silêncio por alguns segundos, depois tive que falar, pois tinha ido lá pra isso. É seu Jovino, o senhor sabe, sábado é dia da festa e nós estamos sem dinheiro, de modo que eu preciso de um conto de réis, assim que eu vender minha leitoa... Joãovazinho (ele me interrompeu):
É claro que você pode contar comigo! Um rapaz que está interessado em namorar minha filha não pode sair por aí sem dinheiro, ou com ninharia (e como se fosse ensaiado, tirou do bolso as notas e me entregou), tome, não vou lhe emprestar, estou lhe dando. Tome é seu! São dois, são DOIS CONTOS!

 
 
S. Paulo, 11/10/1998
www.cordeiropoeta.net
 
CORDEIRO de ITIÚBA
Enviado por CORDEIRO de ITIÚBA em 05/06/2010
Reeditado em 11/02/2018
Código do texto: T2300753
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