CINE GUARANÍ

Era o cinema do bairro. Geralmente a seção começava as 20 h mas desde as 19, um alto falante sobre a marquise rodava uma seleção de músicas da discoteca do seu Emílio, um argentino que chegara há alguns anos ao bairro e montara o único cinema. Quando se aproximava a hora do inicio da projeção, era tocada a abertura da ópera “O guarani” de Carlos Gomes. Naquela noite de verão, estávamos sentados na calçada elevada em frente do armazém de seu Dejalmo, nosso lugar predileto aos finais de tarde, onde reuníamos a turma para as zoeiras noturnas. Num bairro pequeno, não havia muitas opções de diversão além do cinema ou o clube dos ferroviários. Eu e Martinha, mais o Olímpio, Claudinha e uma amiga dela, curtíamos um animado bate-papo entremeados de gozações de parte a parte. Martinha cochichou-me ao ouvido que queria ver o filme. Já comecei a imaginar que ela estava era arranjando mais uma maneira de namorarmos de algum modo anti-convencional. O filme, um dramalhão italiano, daqueles especiais para fazer as senhoras do local, produzir um bom e intenso mar de lágrimas. Argumentei que o filme não era propriamente o que costumava levar-me a pagar entrada pra ver.

- Quem disse que quero ver o filme? Só quero ir ao cinema. Claro que ao falar isso, ela já estava mandando direta a mensagem em meu ponto fraco. O cinema possuía um mezanino que chamávamos galeria. O lugar preferido nas tardes de matinê porque podíamos jogar bolinhas de chicletes, sobre carecas ou cabelos encaracolados. Nas seções noturnas, havia menos pessoas, principalmente em filmes dramáticos, preferidos de pessoas mais idosas. Naturalmente a Martinha queria ir para a galeria, bem no fundo onde não havia ninguém. Sentamos na última fila, o local mais escuro e obviamente nem prestávamos a atenção aos trailers e noticiários que antecediam o filme. Atrás da fila de cadeiras havia um corredor que dava para um compartimento com uma cortina vermelha sobre a porta. A Martinha já imaginara explorar o local e me tomando pela mão sugeriu apenas com o olhar insinuando o que pretendia. Saímos tateando em virtude do escuro quase total e movendo a cortina percebemos uma porta entreaberta. O local era pequeno, com uma prateleira onde havia rolos de filme, uma máquina para emendar as películas que naquela época rebentavam seguidamente. Uma pequena janela ao fundo iluminava o local com a luz tênue da rua. Um providencial sofá abaixo da janela mostrava-se ideal para nossas intenções. Ajeitamo-nos sobre ele e iniciamos os nossos mais profundos e intensos atos de carícias as mais sensuais e excitantes imagináveis. Foi como sempre, um momento único em que nos entregávamos ao intenso prazer de amar com toda a nossa juventude fluindo como um vulcão de intensas sensações de prazer. Ficamos ali, isolados como se o mundo fosse apenas uma ilusão de óptica totalmente ignorada no momento. O filme rolava e músicas sacras denunciavam uma cerimônia religiosa, ingrediente obrigatório para os filmes italianos da época. Assim estávamos alheios ao mundo e ao que rolava na tela e o tempo para nós não existia. Repentinamente, um clarão invadiu o ambiente, denunciando que a película havia se rompido e haveria um intervalo em que seu Emílio iria emendar o filme. Mal tivemos tempo de ajeitar nossas roupas e a figura incrédula de seu Emílio surgiu a nos observar escorada a porta de entrada.

– Pero, qué es? Qué haces? Quiero los dos a mi balcon ahora. O velho não estava nada satisfeito com o que acabara de presenciar e preparamo-nos para um temporal castelhano. Seu Emílio conduziu-nos a uma outra pequena sala na extremidade oposta e mandou o ajudante incubir-se da tarefa de consertar a fita enquanto nos pedia que sentássemos a frente de sua escrivania. Um silencio mortal caiu sobre a pequena sala e nós não sabíamos o que dizer. Ele cofiou a barba balançando a cabeça e ao final decretou,- Udo así, entiendo a la juventud. También tengo los jóvenes. Pero por dios, esto es um cine porsupuesto y no un motel. Jô no me voy a llamar a sus padres pero, lo siento, me han hacerlos expulsados. De volver a mi cine y películas.

Claro, saímos cabisbaixos e não voltaríamos a freqüentar o Cine Guarani. Martinha sempre inventava um novo e inesperado local para praticarmos o que mais gostávamos de fazer. Amar sempre em um local nada apropriado. Desta vez exageramos e iríamos pagar por isso. Mas, Martinha não se dava por vencida e o ocorrido apenas faria com que imaginasse uma outra louca seção de amor em algum local inimaginável.

– O pai está viajando e a mão está cuidando de uma amiga no Hospital dos Passos então podemos tomar banho lá em casa. Claro, ela já imaginara algum novo local e eu nem pensava em recusar e já imaginava o que com certeza a cabeçinha estava tramando. Entramos para o banho e a certa altura, comecei a acariciá-la.

– Espera. Tenho uma idéia melhor, Claro que tinha. Saímos do banho e ainda enrolados nas toalhas, puxou-me pela mão e conduziu-me para a varanda da cozinha. Uma rede presa entre duas pilastras desfez qualquer dúvida. Bem, a rede certamente foi feita apenas para o descanso.

- Mas, espera os índios usavam. Foi uma experiência excitante e cheia de malabarismos, contando-se dois tombos. Felizmente o chão ali era de terra e de qualquer forma teríamos que tomar banho novamente. O local era cercado por um muro alto, o que garantia nossa privacidade. Como estávamos banidos do cinema do seu Emílio, precisávamos encontrar uma alternativa, afinal além de aprontar, de vez em quando assistíamos ao filme como pessoas normais.

Migramos para o Cine Apolo, no centro de Rio Pardo, que por sinal possuía também um mezanino. Não havia um compartimento semelhante, mas atrás da tela de projeção havia um depósito com uma portinhola lateral, que não possuía uma fechadura e... Bem, isso já é outra história.

Lauro Winck
Enviado por Lauro Winck em 25/05/2010
Reeditado em 25/05/2010
Código do texto: T2278908
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