A jornalista e o mendigo

Ana Paula trabalhava como free lancer para dois jornais alternativos em Porto Alegre e fazia uma matéria sobre moradores de rua. A primavera em porto Alegre ainda estava bastante fria e o minuano insistia em vazar por todas as frestas da roupa aumentando a sensação térmica. Eram 7,30 h da manhã e a Voluntários da Pátria estava completamente engarrafada devido a um acidente com um caminhão na esquina da Garibaldi. Chamou-lhe a atenção, um prédio em ruínas ao lado esquerdo do ponto onde estava parada. Tratava-se de uma construção antiga demolida parcialmente, mas uma pequena varanda ainda mantinha-se quase inteira. Um velho com espessa barba branca, cabelos longos e dando evidentes sinais de desleixo, identificava a figura de um mendigo levantando-se atrás da amurada. Decidiu entrevista-lo e manobrou o carro para estacionar em uma vaga a direita.

O velho, Zé, como era conhecido, sentou-se observando um velho vazo com flores brancas que encontrara ao eleger o local para dormir. Não sabia que flores eram aquelas, mas gostava de sentir o seu perfume ao acordar. Escolhera aquele local, porque a pequena varanda era protegida por um resto da marquise que ainda se mantinha. Poderia ir para um albergue, mas, gostava de ficar só. O vazo de flores ainda estava com a planta viva quando chegara e passou a cuidar do vazo aguando a planta com carinho diariamente. Procurou nos bolsos já esfarrapados uma bituca de cigarro. Ele costumava juntar bitucas nas paradas de ônibus, rendia mais porque as pessoas acendiam um cigarro e logo tinham que descarta-lo porque o ônibus chegava. Isto rendia umas bitucas de cigarro ainda quase inteiros. A perna direita doía-lhe bastante, fazendo-o andar com dificuldade. A moça atravessou a rua e andava agora em sua direção. Era muito bonita e andava com graça e desenvoltura ao contornar os carros estacionados. Enquanto caminhava tirou da bolsa um bloco de anotações.

- Bom dia!, Falou aproximando-se ao que o velho respondeu, examinando-a com os olhos verdes penetrantes, - Bom dia moça!

- Você se importaria de me dar uma entrevista? Quero saber algumas coisas sobre você, como vive, o que faz para sobreviver, coisas assim.

- Olha moça, não sei o que um velho mendigo como eu, pode ter de interessante pra lhe contar, mas, pergunte o que quiser.

-Seu nome?

-José Carlos Carvalho e o seu?

- Ana Paula.

-Muito prazer, respondeu o velho surpreendendo-a pela maneira educada.

-Fale de você, da sua vida, você chegou a estudar?

- Moça, até sei ler, devagarzinho, mas, não consigo a muito tempo, fica tudo borrado. Nem sempre vivi assim. Fugi de casa ainda guri, meu pai bebia e me batia muito. Minha mãe o apoiava. Decidi então sair fora. Trabalhei em algumas fazendas, ganhava pouco, tive uma mulher, se chamava Isabel e era bonita, eu gostava muito dela, mas, durou pouco. Um dia ela foi embora, disse que estava grávida e que eu não podia sustentar ela e o bebê. Verdade. Depois, caí de um cavalo, quebrei o braço e não pude mais trabalhar. Agora estou velho, podia me aposentar, mas, precisa uns documentos que não tenho. Não lembro nem quando nasci só sei que foi na época da guerra. Meu pai falava.

- Você nunca mais viu essa mulher?

-Não. Ela foi embora com um viajante. Nunca mais tive notícia. Aí fiquei triste, não liguei mais pra nada. Levo a vida do jeito que dá. O Dr. Paulo me ajuda, me dá uns trocos de vez enquanto. Disse que ia ver um jeito de me aposentar, mas, ficou nisso. Pego um sopão na igreja, cato no lixo dos ricos, eles botam fora muita comida ainda boa.

- O que você tem na perna? Perguntou Ana, vendo que ele esfregava o local vez por outra.

- É só um arranhão, mas, incomoda.

- Está bom, vou voltar amanhã, hoje tenho umas coisas pra fazer e já estou atrasada. Combinado? Vou ver o que posso fazer.

- Ta bom moça, eu vou ficar por aqui.

Despediram-se e Ana Paula seguiu seu caminho.

Ele a observava andando daquele jeito gracioso. Como seria? Pensou. –Poder chegar em casa, ter uma mulher como aquela a espera-lo, jogar o paletó sobre uma cadeira, abrir uma cerveja, afrouxar a gravata e senta-la em seu colo... Uma fisgada na perna desfez seu devaneio. Abriu a calça e examinou o local, estava um vermelhão. Havia gotas purulentas e um vergão acusava uma infecção das grandes. Fazer o que? Pensou enquanto examinava sua sacola de pano onde guardava algo para comer. Havia um pãozinho ainda novo. Um resto de sanduíche e uma banana que ainda tinha a metade boa. Bem, não era muito, mas, dava pra enganar o estômago. Até meio dia arranjaria mais alguma coisa. Sempre dava um jeito Só não roubava. Nunca roubara nada em toda sua vida. Lembrou do Lú que foi preso porque roubou um pedaço de salame na mercearia do Português.

- O Lú, nunca mais voltou, devem ter matado o coitado, só porque tinha fome, pensou enquanto se preparava para mais uma batalha contra a fome.

Ana Paula, chegou em casa, já eram 21,00 h. Sua mãe aparentemente não estava, ou estava trancada no quarto curando mais um porre. Ana não sabia mais o que fazer com a mãe alcoólatra. Nem os Alcoólicos Anônimos conseguiram dar um jeito. Pegou uma pizza destas pré-montadas na geladeira e ligou o forno. Pensava no mendigo. Aquele homem era diferente, não era como os moradores de rua que entrevistara em dias anteriores. Ele era ainda um velho forte, era educado e deveria ter sido no passado um homem bonito, tinha olhos verdes penetrantes, um sorriso franco embora prejudicado pela falta de vários dentes, o que não é um fato isolado, pensou. No Brasil, pessoas com mais de 50 anos, normalmente precisam de próteses. Estava cansada e tomou um banho rápido jogando-se na cama. No dia seguinte tentaria falar com o Geraldo, um advogado seu amigo e ver se podia fazer algo pelo Zé.

Na manhã seguinte enquanto tomava o desjejum, sua mãe, como sempre levantava reclamando da dor de cabeça e de dores na coluna.

- Hoje é dia de aniversário de seu pai.

Ana deu de ombros, pelo que sabia seu pai saíra de casa quando ainda tinha dois anos. Nunca mais se soube de seu paradeiro. – Mãe, vou deixar dinheiro pra ti comprar umas coisas. A dispensa está quase vazia. Falou dirigindo-se para a porta. Já estava em meio ao caminho quando o editor do jornal a chamou pelo celular. -Preciso que você vá até o palácio, o governador vai fazer um pronunciamento. Saco pensou lá se vai um bom pedaço do dia. A entrevista com o governador, como de hábito acabou quase ao meio dia. Correu para o jornal para editar a matéria e quando finalmente conseguiu voltar ao apartamento, lá estava sua mãe caída entre a mesa da cozinha e a pia. Estava desmaiada e saia saliva por um canto da boca. –Mãe, chamou, batendo e sacudindo a mãe sem sucesso. Precisava ligar para o médico. Jogou a bolsa de sua mãe sobre o sofá da sala, precisava achar o telefone do médico. Havia um cartão de visitas e ela tratou de chamá-lo.

Após deixar sua mãe no hospital e conversar com o médico que lhe dissera para tomar providências, porque sua mãe estava muito debilitada e precisava de cuidados além de reduzir drasticamente o consumo de álcool.

Voltou para o apartamento, estava com bastante fome, pois não comera nada e já eram 15 h. Preparou um carreteiro rápido, é um prato bastante prático e não leva meia hora. Enquanto almoçava viu a bagunça sobre o sofá e após sorver o cafezinho tradicional após a refeição preparou-se para arrumar a bolsa da mãe. Repentinamente ao colocar os objetos na bolsa, uma foto preto e branco, já desbotada pelo tempo, chamou-lhe a atenção pela dedicatória no verso. Era um formato de prova 6x9, antiga e mal dava para identificar a pessoa.

A dedicatória escrita com uma esferográfica dizia, “Para minha querida Isabel, com todo o amor, Zé Carlos”. Ana ficou lívida e seu coração disparou. Não. Não pode ser. Mas aquele homem da foto parecia com alguém que ela conhecia. Guardou a foto em sua própria bolsa e preparou-se para voltar ao jornal. Mas, começaram a rodar em sua cabeça, pensamentos desconexos e a simples possibilidade de se confirmar o que ela não conseguia tirar da mente, colocaria sob dúvida tudo o que ela sabia de sua própria vida. Mal conseguiu participar da reunião de pauta e assim que pode correu para o hospital.

Sua mãe estava melhor e dormia quando ela chegou. Parecia tranqüila. Ana sentou-se em uma cadeira ao lado da cama enquanto sua mente rodava os acontecimentos do dia. Na sua certidão de nascimento, constava, filha de Maria Isabel Santos e Álvaro Goulart. Mas agora aquela foto criava uma suspeita muito forte. O Zé falara que vivera com alguém chamada Isabel que o abandonara ainda grávida. Aquela dedicatória não deixava dúvidas. Foi até o corredor, havia uma janela, chovia forte, acendeu um cigarro enquanto observava a água que escorria pelo vidro. Seus olhos encheram-se de lágrimas, tinha agora quase certeza que aquele mendigo era seu pai. Decidiu procura-lo apesar da chuva forte. Ao chegar ao local, não havia ninguém, nem os trapos e jornais que serviam de proteção ao frio estavam ali. Apenas o vazo comas flores.

Apanhou uma flor e guardou-a na bolsa. Eram 20,30 h e não havia quase ninguém na rua. Apenas uma mulher, também moradora de rua encolhia-se junto a porta de um prédio para proteger-se da chuva. Ana aproximou-se e perguntou, - Você conhece o Zé?

-Aquele ali da casa verde? Sim.

- Você sabe onde ele está?

-Moça, o Zé morreu. Foi achado de madrugada, durinho.

Ana sentiu um aperto forte no peito. As lágrimas caiam-lhe misturando-se com a água da chuva e ela chorou copiosamente. Aos soluços indagou,

- Mas o que fizeram com ele?

- Olha moça. Eles levam pro necrotério e depois colocam num saco e enterram no cemitério municipal. Coitado do Zé, ele era um cara legal, dividia até o rango com a gente.

Ana foi até o cemitério. Apenas montinhos de terra com uma cruz numerada. Isto foi o que sobrou do Zé, apenas um número. Com a chuva não dava nem pra identificar um montinho mais recente. A esta hora não havia ninguém ali que pudesse lhe dar alguma informação.

Ana apanhou a flor e colocando sobre um montinho com carinho, pensou, - Não sei onde você está, mas onde quer que esteja, ficará feliz, pois a sua flor estará aqui agora.

Ana afastou-se. Iria agora ao hospital, decidiu que não falaria nada a sua mãe, iria apenas guardar a foto. Afinal, não adiantava mais nada e já tinha problemas demais. Mas iria lutar para que pessoas como o Zé, pudessem ter uma vida melhor e um final mais digno.

Lauro Winck
Enviado por Lauro Winck em 29/04/2010
Código do texto: T2226386
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