Eu e Ela

Eram 20 h e a noite estava relativamente fria, deveria estar em torno de uns 16°. Estacionei o carro e resolvi comprar cigarros. Andei até um bar próximo, mas não tinham o meu cigarro. Resolvi andar um pouco mais, no pequeno povoado, a estas horas da noite, não havia ninguém na rua. A iluminação deficiente de um poste apenas permitia andar pela calçada irregular, sem tropeçar. O bairro ficava distante do centro da cidade, cerca de 3 km. Ia envolto em meus pensamentos imaginando se encontraria outro bar ainda aberto, quando ouvi alguém soluçando. O choro vinha de umas ruínas de um prédio abandonado em péssimo estado. Fui verificar, pois parecia uma criança chorando. Sentada no chão, com os braços cruzados sobre os joelhos e a cabeça baixa, uma menina chorava convulsivamente.

– Oi!, porque você está chorando? Ela não respondeu apenas levantou o rosto e pude ver que era bastante bonita com olhos verdes grandes e penetrantes.

– Você está com frio? Novamente ela não disse nada. Tirei a jaqueta e estendi sobre seus ombros. Sem falar nada ela vestiu a jaqueta ficando com as mãos dentro das mangas.

– O que houve com você? Porque está aqui?

– Porque tu quer saber? Você não tem nada com isso.

- Você está com fome?

– Claro! Eu pareço alguém que acabou de comer um churrasco?

– Você gosta de churrasco?

– Não! Prefiro um macarrão com bastante molho.

– Está bem. Mas quero saber quem é você e porque está aqui.

–Primeiro me diga quem é você e porque se preocupa comigo.

– Eu sou Eduardo.

– Prazer, eu sou Ela.

– Como? Você é quem?

– Ela. Era pra ser Ella, mas o escrivão engoliu um ele. Sabe! Ella Fritzgerald, meu pai era fã dela.

– E onde está seu pai? – Morreu. Cirrose do trago.

– E sua mãe?

– Ta na zona! Cabaré, sabe? Tem um crivo?

– Um cigarro? Que idade você tem?

– Eh! Qual é? Sou de menor tenho 16 e não vem não. Tem um crivo? Olhei nos bolsos ainda tinha dois cigarros. Acendi um e passei outro para Ela.

– A quanto tempo você fuma?

– Só de vez em quando. O crivo ajuda a enganar a fome. Ela acendeu o cigarro, tirou uma longa baforada e me olhou demoradamente.

– Tu paga um rango?

– Pago, mas você ainda não disse o que está fazendo aqui.

– Fugi de casa. Não tem nada pra comer e a vagabunda da minha mãe diz que não ta faturando e que eu tenho que me virar. Disse que na zona eu não posso, porque sou de menor.

– Você usa drogas? Perguntei

– Crack, essas coisas?

– Sim. Respondi.

– Qual é cara, tu vai me oferecer isso? – De maneira nenhuma, você me acha com cara de traficante?

– Não! Acho que tu é um cara legal. Mas nunca se sabe. A Marilda, fumava isso daí e agora tá morta. Se a porcaria não mata os trafic matam.

- Você é uma menina bonita, não tem namorado?

– Tive, mas o cara queria que eu entrasse nessa de Crack. Os outros só querem ficar e se a gente bobear, sabe a Nininha, foi no papo do cara, engravidou e agora anda por aí com filho no colo e cadê o pai? Se mandou.

– O que você quer comer?

– Tu tem grana pro ônibus? Aqui não tem nada, só no centro. – Venha comigo. Você tem mais roupas?

- Tenho uma trouxa com uns panos. Andamos em direção ao carro estacionado mais adiante.

– Legal, tu tem uma caranga.Tu é rico?

– Não, apenas ganho um pouco com meu trabalho.

- O que tu faz?

– Trabalho com computadores.

– Legal, sempre tive vontade de ter um barato desses.

– Você está estudando?

– Olha cara! Até gosto de estudar, mas com estômago vazio, não rola. A gororoba da escola é uma droga.

– Você gostaria de estudar?

– Claro! Mas minha mãe disse que eu tenho é que arrumar marido! Legal essa tua caranga.

– Acho que não temos onde comer uma macarronada. Falei. Ela riu.

– Cara por aqui, só um sanduba ou um X. Na entrada da cidade o Antônio tem um Xisburguer, considerado o melhor da cidade. Ela pediu um Xcarne e eu preferi uma torrada.

– Você quer uma Coca? Perguntei.

– Nem pensar, li numa revista que os americanos lavam motor de carro de corrida com isso. Tive que rir, pedi então um suco natural e fazia tempo que não via alguém comer com tanta vontade.

– Quer outro? Perguntei

– Qual é? Isso engorda e não to a fim.

– Ok, vamos. Hoje você fica na minha casa, amanhã vamos ver o que fazer com você. Esta garota tinha um jeito especial, diferente, parecia ter uma opinião formada sobre muitas coisas. No caminho de casa, quase não falamos. Ela parecia deslumbrada com o carro e acariciava o encosto do acento.

- Tem CD player?

– Tem, aí no porta luvas tem uns CDS. Eu tinha uns CDS de rock romântico, uns de MPB e até alguns clássicos. Preparei-me para ouvir o óbvio, como, “Cadê os funks, Raps ou Hip-hops?” Então para minha surpresa, a Nona sinfonia de Bethowen encheu o ar com seus acordes.

– Tararam, tararam, tararam... Ela cantarolava e uma nova surpresa me deixou emocionado, era afinadíssima, dona de uma bela voz. Fiquei em silencio ouvindo o cantarolar daquela figurinha que estava mexendo fortemente comigo. Chegamos à minha casa Ela parou encantada examinando tudo. Liguei o ar condicionado,

- Puxa! Só tinha visto isso nas drogas de novelas que a minha mãe olha.

– Por quê? Você não gosta de novela?

- Não! Respondeu.

– A gente vê aquelas coisas bonitas, sentada num sofá velho cheio de buracos. Parece que fazem isso pra maltratar as pessoas pobres.

– Ok, pegue suas roupas e tome um banho, o banheiro fica ali.

– Banho? É mesmo, lá em casa a água ta cortada faz bastante tempo, banho só quando a vizinha ta em casa e empresta o banheiro. Quase morro de frio. Falando isso, pegou a trouxa de roupas e foi para o banheiro. Fiquei ouvindo novamente o cantarolar da Nona sinfonia. Meu Deus, pensei, como a vida pode ser ingrata para uns e benevolente para com outros. Poucas vezes tinha visto uma garota tão nova e com uma personalidade tão forte. Nada tinha a ver com a maioria das garotas da sua idade que só curtiam a anti-música que domina a juventude nos dias de hoje. Saiu do banheiro ainda secando os cabelos e enrolando a toalha na cabeça.

- Ok, fique a vontade que eu vou tomar o meu banho. Fez um sinal positivo com o polegar e fui tomar o meu banho. Sai do banheiro ouvindo barulho na cozinha de louça na pia.

– Puxa, isso aqui ta uma bagunça. Tu disse que não é rico, mas deve ganhar bem, tem até isso daqui, deve ser máquina de lavar louça?

– Sim, quase não uso desde que fiquei só.

– Nem sei usar isso, vou lavar do meu jeito.

– Ok, o seu jeito é bom, esta ficando tudo limpo.

– Tu é casado?

– Sou viúvo. Ela morreu ao dar a luz.

– Hum! Tu tem filhos então?

– Tive, minha filha morreu ano passado num acidente de moto.

– Foi mal, desculpe!

– Ela tinha 15 anos, pegou uma carona com um garoto da escola e...

– Sinto muito!

– Bem, não vamos falar de coisas tristes. Venha vou mostrar o seu quarto.

– Puxa! Tu é um cara legal, pensei que ia pedir pra mim ficar contigo.

– Pensou errado! Amanhã vou ver de que forma posso te ajudar. Este era o quarto da Isabel.

– Tua filha?

– Sim, Respondi –

Aquela mulher na foto era tua mulher?

– Sim.

– Era muito bonita. Falou acariciando a foto com a mão

- Você a amava?

– Sim, muito. Agora vá dormir. Ela aproximou-se e me beijou suavemente a face.

– Boa noite! Eu rolava de um lado para outro na cama e não conseguia conciliar o sono. Levantei-me, nem sei que horas eram e fui para a cozinha preparar um café. Repentinamente ao virar-me dei com ela escorada na porta da cozinha.

– Oi! Tem um café pra mim? Perguntou

– Claro! Você também está sem sono?

– Claro, eu não esperava que hoje estaria dormindo num quarto de verdade, com todo o conforto, isso pra mim é uma coisa muito bacana, muito diferente.

– Como se interessou por música clássica? O normal na sua idade seria gostar de outro tipo de música.

– Meu pai era músico, dava aulas e tocava na orquestra sinfônica, isto antes de começar a beber. Ele me ensinou a cantar, ele tocava e eu cantava.

– O Conselho tutelar não cuidou de você?

– Sim, tinha uma psicóloga, mas eles preferem que a gente fique com a família. Mesmo tendo uma mãe como a minha.

– Esta psicóloga quem é?

– É a Dra. Sandra, ela é muito legal, disse que eu tenho que aprender a pensar antes de agir e parar de fazer as coisas, por, acho que é impulso. Isto, impulso.

– Amanhã vou deixá-la com minha mãe e ver o que posso fazer. Ela me olhou com um jeitinho sonhador.

– Sabe? Acho que gosto de ti! Fiquei acordada até agora pensando.

– Espere! Eu tenho 40 anos e minha filha teria hoje a sua idade.

– E daí? A Juliana vive com um cara bem mais velho e ela tem agora 17. Sabe, um dia vi no jornal que um cara com 116 anos morreu e a viúva tinha 50. Quer dizer que quando ela nasceu ele tinha 66 anos?

– Sim, está certo, mas, veja, eu gosto de você, quero lhe ajudar, mas, é só isso. Amanhã vou falar com a psicóloga que cuidou de você e ver de que maneira posso te ajudar. Sandra era ainda jovem, 28 anos, muito bonita e vinha de um casamento mal sucedido. Atendeu-me gentilmente e narrei a ela toda a história.

– Você gosta dela? Perguntou a queima roupa.

– Olhe! Acho que a garota tem algo especial. Mas, acho também que Ela representa neste momento, o preenchimento da ausência de minha filha. Gosto dela, mas, acho que é só uma ternura de pai que neste momento também lhe falta.

- Você depois que ficou viúvo, não se interessou por mais ninguém? Perguntou.

– Bem tive umas namoradas ocasionais, mas nada sério. Mas Ela é menor, mesmo que me interessasse seria complicado.

– Não! Uma vez que você a assuma e a tome como esposa, não vejo impedimento.

– Mas mesmo assim, tenho dúvidas sobre o que sinto. Depois, Ela provavelmente se apaixonará por alguém de sua idade. – É uma possibilidade. Bem, vamos ver então de que forma podemos solucionar o impasse. Sandra conseguiu um internato em Santa Maria e levamo-la para a escola. Ela queria estudar música e a escola tinha um conservatório musical credenciado como um dos melhores. O tempo foi passando e a medida que meu relacionamento com Sandra evoluía, acabamos nos apaixonando e resolvemos nos casar. Ela progredia rapidamente e já dava recitais na escola nos fins de semana. A mãe de Ela morreu algum tempo depois e nós a adotamos. Conseguimos algum tempo depois corrigir o nome então Ela, deixou de ser Ela e passou a ser Ella, mantendo o desejo do pai. Constituímos então uma família unida e feliz. Ella conheceu um jovem maestro e casaram-se. Estamos hoje fazendo as malas para viajar à Europa onde Ella inicia uma tournée. A estréia será em Madrid e a crítica internacional é muito favorável.

– Querido! No que está pensando? Já falei com você, mas parece estar longe. Falou Sandra, sentando ao meu lado.

– Pensava que a vida sempre pode mudar nossas próprias vidas com pequenos gestos que fazemos às vezes sem nenhuma intenção que não seja apenas a de ajudar alguém. Ao tentar ajudar esta menina, na verdade ajudei a mim mesmo. Saí de uma vida sem objetivos. Acabei com dias de uma solidão insuportável e através dela conheci uma pessoa que mudou completamente a minha vida.

– Bem, por tabela mudou a minha também. A propósito, você não acha que está na hora de darmos um irmãozinho para Ella?

– Sabe que não é uma má idéia? Aliás é a melhor idéia que você teve hoje. Afinal estamos indo para os lugares mais românticos do mundo.

Lauro Winck
Enviado por Lauro Winck em 26/04/2010
Código do texto: T2220283
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