DAR O NOME - I

- Bom dia Sr. Amílcar, como estamos nós hoje? Esse soninho foi gostoso? Ah já está sentado, deixe-me abrir estas cortinas que hoje o dia está tão lindo, o Sol parece rir-se para nós, os passarinhos cantam que nem doidos...

- Nós não sei, mas o Benito vejo que está muito...primaveril.

- Sr. Amílcar dormiu mal? Já vi que sim. Tomou a pílula?

- A pílula, a cápsula, o comprimido, a carteira de pó... Só falta você querer aplicar-me um clister.

- Sr. Amílcar, as suas insónias são terríveis, eu sei. Deixam-no com um humor desgraçado pela manhã. Mas veja lá se não se sente já melhor com esta luz encantadora...

- Sim, claro, vejo tudo por outro prisma, Benito, muito obrigado. O chá está muito quente. Não consigo beber assim.

-Ai que cabeça a minha, tem razão. Esqueci-me de o arrefecer. Deixe cá ver a chávena. Eu volto já. Vamos hoje tratar das suas unhas dos pés. Encontrei uma lima excelente que vai fazer o serviço que é uma beleza. Não dói nada. E ficam os cantos bem arredondados e macios e as unhas não voltarão a encravar...

- Benito, mais do que um enfermeiro, é um poeta. Capaz de transformar cada detalhe de higiene pessoal numa ida ao parque.

- Faço tudo com muito gosto. E depois ganho amizade às pessoas. O senhor para mim...

- Sim, sim, vá lá que ainda me molha a alcatifa e esta tem valor sentimental.

- Quando voltar quero ouvir a história da Carla Cortesão.

- Bote-lhe uma folha de hortelã.

- Onde?

-No chá, onde haveria de ser?

- Ora aqui está o cházinho com a folhinha do bom cheirinho.

- O gato já entrou?

- Não. Ele já vem. Está um dia tão lindo.

- Os gatos andam de noite. Dormem de dia. Mais ou menos como eu. Se pudesse andar e dormir de dia...

- Estamos ácidos hoje, Sr. Amílcar?

- Você também?

- Ora, não desconverse. E então a Carla, a Carla Cortesão?

- Carla Cortesão... Mas voltando ao assunto de há bocado...

- Qual assunto?

- Se não me interrompesse seria esclarecido mais depressa.

- Oh eu não tenho pressa, sr. Amílcar, temos o dia todo.

-Pois aí é que divergimos. Você tem. Eu não sei que tempo terei de sobra. Que tempo pode ter um homem com 110 anos, Benito?

- Pois, todo o tempo do mundo, até prova em contrário.

- Agora também é filósofo, não querem lá ver!

- E cantor, Sr. Amílcar, a minha mãe adorava ouvir-me cantar o fado. Então quando ficou acamada como o senhor, chegava a cantar dez fados por dia.

- Espero que de noite se contivesse, por causa dos vizinhos.

- Claro, era só de tarde e quando chovia, que era quando me vinha à alma a tristeza do fado. Aquela tristeza impregnada de destino tal como a cantou a Amália.

- Você faz-me lembrar a Amélia das torres do Técnico.

- A Amélia das torres? A senhora que vê os prédios altos a caminharem com ela?

- E o Sol e a Lua. Aquilo é poesia à solta, que ela não consegue aprisionar nas folhas de papel e lhe sai da boca para fora. Toda aquela construção, a sua história é poesia em estado bruto. A Lua que cai em cima do carro da amiga só porque ela está lá dentro...

- E o que tenho eu em comum com essa senhora, digamos, com um parafuso a menos?

- Não se ofenda, nem a ofenda. Ela é uma senhora.

- E a Carla Cortesão?

- É pena é que interrompa tanto. Se interrompesse menos seria tudo mais fácil.

- Isso é porque sou fã das suas histórias. Ontem falou-me da Carla Cortesão e até sonhei com ela. Nem sei quem é, mas vi a Carla Cortesão. Toda vestida de negro, muito triste, muito magra, até acordei sobressaltado.

- Você sonhou foi com a Mariza. E também eu acordaria sobressaltado se sonhasse com ela.

- Ai Sr. Amílcar, não me diga que não aprecia a nova diva do Fado! Aquilo é uma dádiva que nos enviou o Altíssimo para nos consolar pela perda da Senhora Dona Amália.

- Sim, sim, sem dúvida, Benito, não se abespinhe.

- Pronto, está bem, vamos ao que interessa, se estiver a magoar o pezinho diga, mas vá contando a história da Carla Cortesão que não me aguento de curiosidade.

- A Carla Cortesão, a Carla Cortesão...? Que Carla Cortesão?

- Que Carla Cortesão? Que Carla Cortesão? Não me assuste Sr. Amílcar, eu sei que o senhor está velhinho, muito velhinho vá, mas nunca, nunca deu sinais de fraca memória. Não vai agora a ficar esquecido. O Senhor tem uma memória de elefante, já me contou a história da sua vida, e da sua família toda nestes seis meses que aqui trabalho.

- Benito, não conheço nenhuma Carla Cortesão. Páre com o histerismo. Eu nunca lhe falei em Carla Cortesão. Não é Carla Cortesão. Não há nenhuma Carla Cortesão. Nunca houve nenhuma Carla Cortesão. Eu disse Clara. O nome dela é Clara. Clara Catalão. E isso é um pormenor muito importante. De facto o nome dela é a história toda.

- Peço imensas desculpas, Sr. Amílcar. Enganei-me, pronto, cabeça de alho chocho, já a minha mãe me dizia, Benito vê lá se assentas essa tua cabeça de alho chocho. Baralho muito os nomes.

- Não pode Benito. Os nomes não. O nome de uma pessoa é um pilar crucial da sua existência. É quem ela é. Não lhe pode trocar o nome. Clara Catalão foi uma pessoa que ficou sem nome muito tempo. Roubaram-lhe o nome durante muito tempo e com isso também lhe roubaram a vida.

- Foi assassinada?

- Sim e não. É uma longa história. Não sei se consigo voltar a entrar nesse poço de horror.

-Uma história de horror! Até já estou arrepiado...

- De horror, mas também de ficção.

- Não é uma história verdadeira? Ela nunca existiu?

- Existiu, existiu. Mas a realidade por vezes não está ao alcance da nossa compreensão. A ficção tem de dar uma ajuda para colmatar as falhas, as pontas soltas e por vezes para maquilhar a verdade. Porque temos de ser poetas fingidores para fingir a verdadeira dor. Dá-nos a distância para poder sobreviver ao horror que se descreve e que no fundo não pode ser dito totalmente, Porque de facto não há palavras para dizer o indizível. Pensar o impensável. Recorre-se à ficção. Faz-se de conta que tudo o que se passou foi uma espécie de filme. Permite-nos uma certa distância. Permite-nos respirar. De outra forma a realidade cairia avassaladora sobre o nosso peito.

- Nosso peito, salve seja, Sr. Amílcar de tanto fazer troça de mim também já aprendeu a falar na primeira pessoa do plural.

- Sim, touché, Benito. Pode ser o princípio duma bela amizade.

- Sr. Amílcar...

AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 21/04/2010
Código do texto: T2210329
Classificação de conteúdo: seguro