DOCE DE ARAÇÁ
- Vicência! ... Oh! Vicência!...
- O que é Sanana?
- Eu tô com vontade de comer doce de araçá...
- Ave Maria Sinhá! Adonde é que eu vô arrrumá doce de araçá prá sinhora cumê?
- Acabou tudo foi?
- E apois! O resto que tinha o coroné mandou botá na lata prô nhô Venâncio levá.
- E o coronel não sabe que papai não pode comer doce?
- Sabê ele sabe mas, quem é qui pode negá as coisa a nhô Venâncio? Quando ele cisma...
- Mas eu quero comer doce de araçá. Desde manhãzinha que tô com uma vontade doida. Estava me segurando porque tô muito gorda mas, eu acho que é o bucho que tá pedindo.
- Se é desejo tem que fazê logo se não faz má à criança.
- Vai apanhar araçá Vicência... Faz o doce prá mim.
- Já vô fazê Sanana. Sinhá num sabe que eu faço tudo. Desde que vossa mãe foi pru céu, quem cuida de vosmecê num sô eu?
- Mas eu queria agora, Vicência...
- Eu faço um tiquim. Num instante fica pronto.
- Há não. Pouquinho não. Eu quero um tacho cheio pela boca.
- Se Sanana comê muito pode improvocá. Aí em vez de fazê bem vai fazê é má.
- Vai Vicência, vai... Faz meu doce.
- Espere um tantim, já já tá pronto.
Sentadas no alpendre da casa grande, Sanana grávida de sete meses, na cadeira de balanço bordando uma camisinha de cambraia de linho. Vicência no chão com a almofada de 25 pares de bilros entre as pernas, fazendo as rendas que seriam aplicadas nas roupinhas do neném. (A linha de algodão ela mesma fiara na roca mais que centenária) Dalí, as duas podiam ver Antonio Fabrício, primeiro filho de Sanana, brincando de jogar carrapeta com dois meninos escravos praticamente da mesma idade que ele. Sem levantar do chão, Vicência gritou;
- Bastião, Gerê!...
Atendendo ao chamado, os meninos interromperam a brincadeira e vieram até a escadaria.
- Inhora madrinha, disseram em coro.
- Vão os doi caçá araçá. É prá trazê só os maduro. Leve a perdoe. Vou cuspí no chão, é prá vortá antes do cuspe secá.
- Posso ir também, minha mãe? Perguntou nhô Toinho com voz chorosa.
- Vá! Pode ir.
- Sanana, o coroné pode num gostá do sinhozinho tá no mei do mato com esses moleque.
- Tem nada não. Eles vão voltar logo e Nossa Senhora não vai deixar acontecer nada com eles não.
Gerê, o mais esperto dos dois escravos correu, por fora da casa grande, até a cozinha e pegou a cesta de vime que fecha quando se pega nas duas alças ao mesmo tempo e que era artefato indispensável dos frades pedintes de esmolas.
[O costume nessa época era pedir perdão, ao frade, quando o solicitado nada tivesse para dar. Daí a frase “peço que me perdoe por não poder ajudar” foi aglutinada para “perdoe” e a cesta ficou com o nome]
No rastro de Gerê, nhô Toinho e Bastião também saíram em desabalada carreira.
Logo após o primeiro talhão de cana, havia uma capoeira preservada onde se encontravam com facilidade, araçás, pitomba, mangaba, gogoia, cambará, ubaia. Mais para dentro do mato um pé enorme de cajá com seu tronco rugoso era um convite constante para subir nele e apreciar, lá de cima, a vista de quase todo engenho com sua chaminé de tijolo vermelho, o rio, a roda e o pilão d’água, a casa de farinha, a casa de purga, a capelinha caiada no alto da colina com as cruzes das sepulturas de escravos do lado esquerdo (diziam que de noite tinha alma penada vagando por ali), mas dessa vez não podiam subir na árvore. Os araçás estavam grandes e saborosos. Uma jaca madura despencou do pé e causou um grande susto nos três meninos quando se espatifou no chão. Entre risos se empanturraram com os bagos amarelos, mais doces que mel. Com a perdoe quase cheia, voltaram para a casa grande.
- Me dê logo um bocado desses Vicência, pediu Sanana.
- Deixe lavá premero sinhá.
- Carece não. Eu quero assim mesmo. E Sanana encheu a boca com as frutinhas de sabor agridoce.
- Sinhá vai improvocá...
Dizendo isso, Vicência levantou-se do chão e foi para a cozinha preparar o doce. Pegou o tacho de cobre na despensa escura e levou para o lado de fora. Depois de examinado, sob a luz do sol, viu que precisava ser areado para tirar a grossa camada de azinhavre que deixava todo o interior do utensílio azulado.
- Felicidade, pegue limão galego e vá arear esse tacho no rio. Volte logo prá me dá adjutóro nos araçá.
Vicência voltou para a cozinha e despejou o conteúdo da perdoe dentro de uma gamela grande com água, com faca de bambu, para não "empretá", foi limpando as frutinhas, tirando a casca, abrindo ao meio e raspando o interior das bandas dentro de outra gamela, ao mesmo tempo em que ia fazendo a separação, numa gamela as bandinhas, noutra as sementes.
Felicidade foi correndo até o pomar, pegou dois limões dos grandes e seguiu para a beira do rio. Colocou um punhado de areia fina molhada no meio do tacho junto com um limão e pisou com toda força para estourar a fruta que iria servir de esfregão. Depois de enxaguado, repetiu a operação e o tacho ficou brilhando como se fosse feito de ouro. O enorme calor da tarde em contraste com a água fria do rio era um convite ao mergulho que Felicidade não teve forças para resistir. Com o vestido colado ao corpo e o tacho na cabeça, a moça subiu o barranco. As formas exuberantes da adolescente vinha de há muito tirando o sono de Bento, o capataz, que estava no alto do barranco admirando o espetáculo da pele escura em contraste com o pano branco molhado que deixava à mostra todos os detalhes.
- Venha cá negrinha.
- Vô não sinhô.
Felicidade fez menção de correr, Bento guiou o cavalo para impedir a passagem.
- Vou lhe comer agora...
Enquanto Bento descia do cavalo, Felicidade soltou o tacho e correu para a casa grande gritando,
- Mãe, me acuda pel'amô de deus!
Bento tornou a montar no intuito de agarrar a negrinha pelos cabelos antes que alguém pudesse ouvir. Felicidade vinha correndo entre dois talhões de cana já bastante altos, quase no ponto de corte. Felicidade era ágil e conhecia muito bem o lugar onde nascera. Apesar do medo que estava sentindo, entrou num talhão e se escondeu no meio da palha seca do canavial. Bento desesperado entrou no talhão do lado contrário e estava como louco, fazendo o cavalo pisotear as canas e gritando...
- Vou lhe pegar, vou lhe pegar...
Só parou quando deu de frente com o cavalo do Coronel.
- Que é isso homem? Você endoidou?
- Foi, foi, foi o guará, Coronel. Foi um guará que eu vi.
Vicência terminou de limpar todo araçá e nada de Felicidade voltar. Chegou à porta da cozinha e gritou...
- Bastião, Gerê...
- Inhora madrinha...
- Vá no rio e diga à Felicidade que traga o tacho. Já tá bom de tanto lavá.
Os dois meninos foram correndo. Encontraram o tacho largado no barranco, mas nem sombra de Felicidade. Voltaram com a novidade: Felicidade havia sumido.
- Minha nossenhora, Felicidade deve de ter morrido no rio.
- Pare com isso Vicência. Mande chamar o Coronel. Meu doce já está pronto?
- Inda não sinhá...
O coronel depois de informado, mandou recado para que o pescador, seu velho fornecedor de carito, procurasse para ver se encontrava o corpo da negrinha que todos julgavam ter morrido afogada. Somente Bento, o capataz, insistia em que Felicidade havia fugido.
Vicência voltou para a cozinha e cumprindo sua sina de escrava, obediente como cão, colocou no tacho, uma cuia de açúcar e meia de água misturada com as sementes. O fogo alto rapidamente ferveu a mistura separando as sementes da parte macia que se desfez na calda que foi despejada na gamela e desta, através da peneira de volta para o tacho agora com as bandinhas do araçá, outra cuia de açúcar e um punhado pequeno de cravos da índia. A colher de pau de cabo longo não parou de mexer até que o doce apresentasse o brilho dourado e a calda ponto de fio. O tacho foi colocado na tina com água para o choque térmico finalizar o cozimento. Do tacho, o doce foi transferido para a compoteira de cristal.
Sanana, sentada no banco longo da cozinha, comeu toda a raspa do tacho. Comeu também quatro taças bem cheias do doce com a sofreguidão de um náufrago. De pé, enchendo a quinta taça, sentiu tontura. Sentou e pediu água. Vicência pegou a moringa no peitoril da janela e antes que Sanana bebesse o primeiro gole, vomitou tudo o que havia comido, sujando o chão da cozinha e o vestido. Segurando o estômago disse com voz sumida...
- Ai!... Que dor Vicência...
- Eu dixi prá Sinhá que num cumesse nessa danação. Agora tá aí, com dô...
- Mãe!
- Felicidade minha fia, onde vosmecê tava?
- Tava iscondida no mato. Seu Bento queria me pegá-me. Disse que ia me cumê.
- Que história é essa? Perguntou o Coronel que estava comendo uma taça de doce.
- Foi coronel. Quando eu tava areando o tacho.
- Esse cabra parece um jumento no cio. Vou mandar dar-lhe uma pisa de cipó de boi agora mesmo... guará, pois sim que era guará...
Sem terminar de comer o doce, o coronel saiu da cozinha deixando as três mulheres mudas, sem entender o porquê da última frase.
Qual a relação do que havia acontecido com o guará que estava comendo as canas maduras?
(continua em A Cheia)
(nas falas dos personagens escravos, procurei reproduzir a forma de falar dos quilombolas, meus conhecidos.)