AMIGOS, ENFIM!

Ele era descendente de pastores, uma raça nobre de cães. Em tudo se parecia com seus ancestrais, apesar de ser filho, por parte de mãe, de uma cadela vira-lata. Mas herdara do pai qualidades inatas – o preconceito – e, não fora sua tendência de gostar de relacionar-se com amigos da sua rua teria, por certo, grandes dores de cabeça por causa dele. Estes, seus amigos, descendentes de diversas raças, cuja mistura de sangue lhes proporcionara as cores e a pelagem próprias e inconfundíveis dos vira-lata, portavam-se inconvenientemente, fora dos padrões e dos parâmetros adequados a um treinado pastor alemão. Seu maior prazer era correr atrás dos gatos até o fim da rua ou até o galho mais elevado de alguma árvore da redondeza. Depois, vendo o gato trepado e... furioso com o trote que levara, o brinquedo perdia a graça e os cachorros voltavam a seus folguedos normais.

Schuft – era esse o nome que lhe dera seu dono, que era de origem alemã – entre a inércia da sua casinha posta nos fundos do terreno e o corre-corre da rua, dava preferência ao exercício das pernas, correndo para lá e para cá em todas as ruas a seu dispor, a ficar sedentário e preguiçoso, cuidando da casa do seu patrão. Mas esses costumes não lhe rendiam as boas graças dos moradores da redondeza. Toda vez que se animava a correr atrás d’algum gato, choviam-lhe pedras no cangote, atiradas pelos donos do bichano em sua defesa.

Havia, porém, um gato preto numa das casas da rua que despertara em Schuft sentimentos de amizade. O que ele não conseguia era convencer o inimigo natural dos de sua família a um bom diálogo para que se entendessem e parassem com os mal entendidos e as animosidades naturais entre gatos e cachorros.

- Bom dia, disse ele certa vez , tentando aproximar-se.

Mas o instinto bélico do felino falou mais alto. O medo de ser apanhado pelos dentes do seu “inimigo” decidiu pela corrida maluca do gato para a primeira árvore à vista, que sabia inatingível pelo cão.

Em vão tentou convencer seus amigos de rua a se comportarem como “gente” e deixarem de maltratar o “pobrezinho” daquele gato preto. Eles, porém, não lhe deram ouvidos, alegando ser esse seu brinquedo preferido e que, além disso, precisavam dele para exercitarem as pernas, com vistas às grandes caminhadas do dia-a-dia de trabalho na procura de alimentos.

Certo dia, quando Schuft descansava no interior da sua casa, ouviu o barulhinho característico das patinhas de veludo, próprio dos gatos. Seu apurado olfato traduziu o cheiro vindo pelas ondas vento como sendo o daquele gato, de quem queria ser amigo. Com alguns passos leves moveu-se até a porta da sua morada e viu o gato preto, que se atrevera a passear pelas redondezas do seu lar.

Vendo o cachorro na porta de casa, o gato retesou-se todo, eriçando os pelos o mais que pode para parecer maior aos olhos do inimigo, num gesto de defesa. Schuft aproveitou o momento de indecisão do felino para “lavar a alma”, falando.

- Belo dia, senhor gato. Passeando?

- Para início de conversa quero que saiba que não sou um gato qualquer. Sou um gato preto. Não tem medo?

- Não, não sou supersticioso. Para mim o senhor é um gato preto só na pelagem, como poderia ser branco ou amarelo.

- É bom isso. Os humanos, além de supersticiosos, são racistas. Assim como os brancos não gostam dos pretos, eles também não gostam dos brancos.

- Acho isso uma grande besteira. Assim como o senhor é um gato com essa cor, eu poderia ser um cachorro branco ou preto, no entanto sou cinza. Não é pela cor que se diferencia o indivíduo. É pelo caráter e por suas obras que se avalia cada ser vivo.

Enquanto assim falava viu com alegria e surpresa que os pelos do seu interlocutor alisaram e ficaram normais, ajustando-se elegantemente ao corpo.

- Você é filósofo ou está tentando gozar de mim?

- Nem uma coisa nem outra. Já esperei muito por este momento. Estou simplesmente querendo ser gentil para que o senhor veja e sinta que não é necessário, por ser gato, da família dos felinos, com diferença na cultura e na cor, seja meu inimigo.

- Isso lá é verdade. Acontece que desde que me conheço por gato me ensinaram que devo ser inimigo dos cachorros.

- Isso é coisa de antigamente. Vamos nós dois provar à sociedade felino/canina, que somos todos produtos da Mãe Natureza, que gato e cachorro podem ser amigos? Acho que teríamos muito a lucrar. Trocaríamos experiências e culturas e, de quebra, acabaríamos com essa canseira de correr um atrás do outro. Topa?

O gato, que não esperava tal proposta desse cão que já há dias vinha observando e abalizando, sorriu com o rabo e aproximando-se de Schuft, esfregou a patinha de veludo nos pelos da longa perna do cachorro em sinal de aceitação.

E desde aquele dia, para espanto dos demais moradores caninos daquela rua, ficaram amigos. Quando os outros tentavam divertir-se com algum gato, o Schuft defendia seus novos amigos. E, com essa amizade, deram uma soberana lição de moral a ser seguida pela filosofia de vida do bicho homem – nunca desprezar ou desprestigiar o próximo por causa da sua cor, sua raça, sua religião ou ideologia política ou seu estado físico.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 16/09/2009
Reeditado em 16/09/2009
Código do texto: T1813455
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