AQUELE DIA...

Parecia um dia igualzinho a todos os outros dias.

O sol de manhã cedinho, quentinho que nem café coado na hora.

O vento mansinho, fresquinho, bem fresquinho, levinho igual à mão da mãe, que vinha de noite pensando que eu dormia, me fazer um carinho.

Eu esperava por isso toda noite. Eu adorava aquela mão macia e fresca me dizendo em silêncio que me amava e era o melhor do dia por que só eu ouvia.

O galo já tinha terminado sua cantoria - ainda bem! - não gosto de galo cantando, triste, feio e muito barulhento. E eu acho que até o barulho tem que ter um pouco de silêncio que é para ter encanto. Assim, como quando criança brinca fazendo algazarra e a mãe "cala" para ouvir.

Canto bom era o do Bem-te-vi, que começava justinho quando eu acordava. O canto do Bem-te-vi, sim, é gostoso de ouvir, faz "cosquinha" na alma - ou seria na curiosidade?; quem será que ele viu?

Saía da cama antes que a mãe chamasse. Ai! que era um Deus nos acuda se ela tivesse que chamar.

Eu abria a janela, para que o dia que já batia afobado, pudesse entrar e me abraçar. Todos os dias "dava de cara" com a Dalva, uma menina grandona e caladona que morava cinco,...não, eram seis casas "pra baixo" da minha. Coitada! Franja, maria-chiquinha, vestido estampado de florzinha, meia pelo meio da canela, sapato preto de fivela e sem saltinho. Aquela "marmanja" de maria-chiquinha!? Virava chacota na escola!

Escutava o barulho das cadeiras sendo arrastadas e das xícaras sendo batidas nos pires e então corria.

É que o pai não gostava de sair para o trabalho antes de ver e abençoar os filhos todos, porque se desse de morrer de repente, não levava dever mal cumprido e muito menos saudade. Saudade, se quisesse, que ficasse. E não é que ela quis? Justo naquele dia que parecia tão igualzinho a todos os outros!

O pai abraçou, beijou, abençoou e foi trabalhar.

A mãe já se virava para ir ouvir a novela no rádio. Eu não gostava de novela. Aquela moça - pobrezinha! - chorava tanto e sem parar por causa de um moço que me parecia feio e ruim como o próprio diabo.

Que moço mais horrível! Eu que nem pensava nisso, pedia a Jesus, Maria e José que me livrassem de um daqueles.

Eu, então livre da obrigação feliz do café da manhã, sapecava um beijo na bochecha preta da Trindade e saía correndo para o quintal ainda ouvindo-a dizer: -Arre, menina, que num "gostio" disso não! E eu ria feliz, porque sabia que ela adorava. Era bom!

Eu saía correndo para o quintal que era porque eu gostava de ouvir a Benedita cantarolando na beira do rio que corria ao lado do bambuzal. Era uma belezura a cantoria da Benedita enquanto batia a roupa na pedra grande e lisa, num rítmo certinho demais que até dava para acompanhar. Ela rodava a roupa por cima da cabeça e batia na pedra. Um, dois, três, tum ..., um, dois, três, tum...

Depois Benedita ia estender a roupa no varal lá "pras" bandas da horta e eu aproveitava para me deitar na pedra quente e branca de sabão - êta cheirinho mais bom! - e ficar ouvindo o barulhinho silencioso do rio correndo e brincando de pega-pega com as pedrinhas do fundo, a algazarra daquele tantão de passarinho no bambuzal. Uma lindura!

No almoço tinha quiabo com angú e frango. A Trindade gostava de castigar. Todo mundo "suando" aquele angú, mas tendo que repetir, se não Trindade magoava, fingia enxugar os olhos no avental e choramingava que ninguém tinha se agradado de sua comida. "_tamanho trabalhão pra quê?" Mas ela era um general e a gente não passava de soldadinho de chumbo nas suas mãos chantagistas. Até o pai consumia dois pratões e ainda sofria o doce de leite com queijo e o café. E eu ficava ali, sentada quietinha no meu canto, olhando tudo e todos no meu silêncio abobado, só pensando uma coisa: "-Eu era princesa mesmo, com fada madrinha e tudo e era muito feliz e sabia que era.

Depois do almoço eu ia direto para o pé de mixirica que era um cheiro bom demais e lá eu sonhava e sonhava, e ensaiava tudo que queria ouvir e falar. Eu tinha dessas manias de ficar falando com ninguém.

Lá pelas tantas me dava uma saudadezinha da Maria Eugênia e eu corria para o quarto e ficava com ela no colo, num abraço bem apertadinho.

Mas era só um pouquinho e escondido, porque eu já "tava" me sentindo meio grande para brincar de boneca, e ainda por cima boneca de pano. Eu nunca que ia ficar grande mesmo era para brincar de pensar. De noitinha juntava todo mundo na sala grande da frente e tinha até visita. Eu aproveitava para treinar. Ficava olhando para uma pessoa, qualquer uma, com um riso bobo e bambo na boca que era para ela nem desconfiar que eu estava pensando de tudo. E ela nem desconfiava mesmo!

Vai ver que foi esse treino todo que impediu a todos de saberem, até hoje, o tantão de tristeza e de saudade que entrou no meu pensamento naquele dia. Aquele que parecia, mas não foi igual a todos os outros dias.

É que em algum momento daquele dia desleal, o pai cismou de morrer.

O pai tinha razão. Não levou a saudade com ele, porque ela quis mesmo foi ficar grudada no meu pensamento que ninguém podia ouvir.

E ela gritava lá dentro, desmanchando o bom do silêncio que eu tanto gostava de ouvir, fazendo um barulhão mesmo.

Depois, os dias tiveram que reaprender a serem iguais de novo, de uma maneira diferente. Sem o pai.

Eu demorei mais. Todo dia eu pensava que era igual e saía correndo do quarto, mas a mãe não brigava mais se eu demorava, e não ouvia novela mais e não ria mais e nem me acarinhava mais quando pensava que eu dormia.

A Trindade não quis nunca mais fazer quiabo com angú e frango.

_Ah! faz Trindade, eu gosto tanto!

-Não. "Num" faço nunca mais, de "jeitio ninhum".

Os dias só não tiveram um trabalho maior em reaprender a serem iguais de forma diferente, foi por causa da Benedita que só se abalava se o rio secasse. "_Fazer o que, diante da vontade de Deus, minha gente? É ir seguindo até que a gente vire vontade d'Ele também."

E ela seguia com o mesmo canto, com as mesmas batidas da roupa na pedra, no mesmo rítmo, facilitando a tarefa dos dias.

E num daqueles dias diferentemente iguais, a saudade dentro de mim deu trabalho. Gritou que nem se fosse uma louca no meu pensamento.

Gritou tanto e tão alto, que arrebentou e aí eu tive que chorar e até pensei que não ia parar nunca mais. Depois disso a saudade deu uma trégua no barulhão. Fica aí, grudada, não larga, mas já não grita, e eu até aprendi a escutar o silêncio dela, que por mais duvidoso que possa parecer, até consegue me consolar.

É assim que eu gosto de passar os dias. Pensando sem que ninguém possa me escutar. Assim eu posso pensar alto, baixo, feio, bonito, simples, complicado, colorido, preto e branco, doído, alegre. Posso pensar de tudo que é jeito.

Só mesmo aquele dia traiçoeiro eu ainda não consegui pensar diferente!

Isabel Damasceno
Enviado por Isabel Damasceno em 21/05/2009
Reeditado em 08/06/2011
Código do texto: T1606271
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