O espelho dourado

Aquele espelho certamente era superior a todos os outros. A moldura era barroca, datada de 1637, importada da Itália pelo bisavô. Foi preciosamente esculpida em madeira nobre, repleta de arabescos, numa grande riqueza de detalhes, revestida com folhas de ouro e por isso majestosa no brilho dourado. O vidro pesado e espesso dispunha de uma proeminência no acabamento das extremidades, onde podia-se observar uma elegante junção entre espelho e moldura.

Via-se nele algo maior, um reflexo digno de nobreza, diria Salazar. Refletia a extrema beleza da pele morena, os dentes branquíssimos, olhos brilhantes, cabelos viçosos, corpo esbelto, assim como um Deus da Grécia Antiga; indiscutivelmente uma composição encantadora! Elegantemente vestido, possuía um reino dentro de si, garboso e sedutor. Olhava-se diariamente no espelho, e através dele, encantava-se com tamanha beleza.

Adquiriu a posse do espelho quando muito jovem, logo após o falecimento do avô, nas mais perfeitas condições. Mas, nos exatos 50 anos de pertencimento, pequeninas ranhuras começaram a surgir na parte central do vidro e o processo de infestação foi rápido. Em apenas algumas horas a degradação já era desastrosa. A moldura valiosa também ficou parcialmente enegrecida por fungos e cupins que encontravam múltiplas brechas para a reprodução.

Neste dia Salazar aproximou-se do espelho, e ao olhar a imagem opaca e sem vida refletida, permaneceu inerte e incrédulo diante da carne degenerada e enrugada pelos anos, vencida pelo efeito devastador do tempo. Tudo envelheceu junto com o espelho. Assim sendo, o homem foi tomado por um desespero incontrolável, e numa tentativa de salvá-lo, arrancou-o abruptamente da parede. Mas a força incalculada arrastou-lhe para trás, e o espelho, que atravessou séculos de império, tombou para finalmente morrer na velhice.