Vacas

Vacas

Sou uma vaca. Tenho de dizer assim, pois você não pode me ver. Como sou a única vaca do estábulo que fala, meu proprietário me deu, (secretamente), um lap top, para que eu pudesse falar com alguém. No estábulo nem pensar. As outras vacas são obtusas e os matutos sairiam correndo, espalhando aos quatro ventos e a fazenda viraria um circo.

Sou branca com manchas pretas. Sim, sou uma vaca leiteira. Meu proprietário vive à custa do nosso leite e eu, para dar leite, tive antes de ter um bezerro. Você bem pode imaginar o que tive de fazer para conseguir esse bezerro.

Não, nunca saí nua numa capa de revista. É bem verdade que nasci nua, mas acho que isso acontece com todo mundo. Fico nua o dia inteiro, com um enorme sino pendurado no meu pescoço, o que torna bastante inconvenientes meus passeios pelo pasto. O pasto é verde. Meu proprietário me disse (secretamente), que irá me colocar num curso para aprimorar meu poder descritivo. Será um curso por correspondência. A fazenda é bela. Adoro ficar sob a mangueira badalando meu sino e comendo folhagens. Quando faço isso, o capataz surge do nada, segurando uma vara e atrapalhando meu repasto. Um dia perco a paciência.

Sou uma vaca e tenho um filhote de cada vez, que eles insistem em chamar de bezerro. Gatas e cadelas têm filhotes e saiba, um monte de uma só vez.

Adoro ficar encostada na cerca branca vendo os burrinhos serem chicoteados pelo capataz.

Por aqui acontece cada uma. Semana passada apareceu uma mulher e se instalou na entrada da fazenda. Armou ali uma barraca e ficava o dia inteiro agitando um sino, (menor que o meu), e gritando que a mulher do patrão era uma vaca. Fiquei bastante cismada com isso. O estábulo é limpo. Minhas outras companheiras vacas são mudas e ruminam. O que me leva a pensar:

Sou uma vaca porque rumino ou rumino porque sou uma vaca?

Meu patrão levou, (secretamente), sua esposa para uma clínica ou algo do gênero. Até agora não voltou. Entendo tudo o que os matutos dizem mas não abro minha boca, exceto para mugir. Já, a tal mulher que ficava badalando o sino e gritando na porteira, numa noite escura uns homens de máscara colocaram-na num saco. Vi tudo porque estava com insônia. Na manhã do dia seguinte homens sem máscara enterraram não sei o que debaixo da outra mangueira, aquela que não podemos chegar perto. Mas podemos ver. Minhas companheiras de estábulo não falam, mas pensam. Lemos os pensamentos umas das outras. O problema é que elas são extremamente fúteis. Acharam que era um carregamento de bombons com licor, para serem distribuídos para nós, vacas, durante a Páscoa. Para que o leite ficasse com sabor de licor. Valha-me...

Por isso sou tão isolada. Os capatazes, pois para mim, afinal de contas, são todos capatazes, só falam bobagens. Ou sobre futebol, ou sobre política, ou sobre a vida dos outros. A maior parte do tempo é sobre a vida dos outros. Fulano foi roubado, sicrano foi seqüestrado, o filho de beltrano fuma crack, essas coisas. Nada edificante, sabe? Não conseguem falar nada edificante sobre ninguém.

Ontem à noite, para coroar, apareceu outra mulher na porteira da fazenda, perguntando por aquela que, na minha opinião, foi ensacada. Falava muitos palavrões e a palavra vaca surgia em destaque no meio do seu palavrório. Eu e minhas companheiras de estábulo, por conta dessa algazarra, tivemos insônia. Até aparecerem os homens de máscara e ela desaparecer. Só assim pudemos dormir.

Pela manhã, homens (talvez sejam os mesmos), sem máscaras, sepultaram não sei o que debaixo da tal mangueira. As meninas ficaram excitadíssimas, para elas era uma confirmação de que em breve comeriam bombom com licor.

Valha-me...

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 25/03/2010
Reeditado em 05/12/2012
Código do texto: T2158022
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