Mudo o criado?

Mas é a respeito de terço: coincidência atroz, imagine que em matéria

de reza muito em comum temos nós. Lá em casa, o mesmo ritual. Não

sei se chegava a ser diário, mas era freqüente, com o pai puxando a

gente, a gente acompanhando. E cada um, assim que ia aprendendo,

tinha o direito, pela ordem de idade, de puxar um mistério, cuja

contemplação, cabia sempre ao papai: mistérios gozosos, dolorosos e

gloriosos.

E era uma festa, rezar dez avemarias assim em frente a todo mundo compenetrado, cabisbaixo e concentrado. Os meninos que não entravam na reza, ainda desobrigados, podiam ficar brincando, zanzando, desde que calados. E um pouco antes de deixar essa turma, e passar integrar a dos rez(a)ponsaveis tinha eu lá meus seis pra anos, ah que aventura: ficava feito porquinho, acompanhado pelo César e pelo ainda pouco mais que bebê Zé Luis, andando de quatro pela sala e não é que nessas brincadeiras ficava entrando e saindo do criado mudo que era um dos poucos moveis a que tínhamos acesso.

E não é que numa dessas manobras - aquela luz mortiça, a velinha do Santíssimo, no azeite e água, capturava mais atenção das vistas, subi no criado e, alguma coisa, pequeninha, que pelo calção me havia escapado, pafo, assim que fechei a porta, foi logo amassado.

Não era mais do que um tantinho de pele, superficial, mas ai, que dor infernal, e feito o criado, mudo tive que ficar pra reza não impaiar. Se há urro interior, foi esse que exprimi, em estupor. E continuou aquela dor, até que com mercúrio cromo, e como, tornou-se ainda superior.

Nos próximos encontros com os familiares, sempre venho me prometendo isso, vou ver se exponho a matéria. Acho que ninguém vai querê-la comprovada via exame de cicatriz.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 17/09/2015
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