O mormaço da tarde

Era nossa diversão e encantamento sair até a primeira esquina, na confluência das casas da Lia Fidélis e do João do Freire com a do Chiquim Aleixo, lá pelas duas e pouquinho da tarde para encontrar mamãe no caminho de volta da fábrica.

As admoestações do perigo do mormaço e da escandescência, feitas por ela mesma, eram convenientemente ignoradas por ambas as partes, para que se realizasse aquele momento mágico: ver mamãe coberta de fiapos de algodão, suada, extenuada, mas sorridente e com a gente, meiga que nem manteiga.

Nossa imediata preocupação nem era contar travessuras de outrem ou delatar quem deixara de fazer a obrigação: era mostrar os machucadinhos, as feridinhas, e ganhar, no beijinho, o selo da aprovação e de que a cura estava a caminho.

Mas qual não foi o meu tormento quando aquele inchaço bem no meio da testa foi diagnosticado como berne. Um vermezinho tinhoso feito ele só, que se aninha sob a pele. E isso foi só o começo do tormento, pois dali pra frente, com o berne, tinha-se que chegar ao cerne.

Tanta receita que se encomendava para extrair o bichinho, que ao cabo, o diabo não arredava nem um tiquinho. Falavam até em botar um pedaço de toucinho no lugar e quando o vermezinho saísse pra respirar, na armadilha cairia - e o toucinho dele se encarregaria.

Solução radical seria um médico a lancetá-lo, mas doutor no lugarejo, e naquele ensejo, só mesmo uma vez ao mês, atendido o desejo do freguês.

Paciência e espremeção, e veio a solução, ou o verminho se aborreceu, e cedeu. Adieu.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 06/07/2015
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