TERUEL E OS DUENDES - CAPÍTULO PRIMEIRO

TERUEL E OS DUENDES

William Lagos

CAPÍTULO PRIMEIRO

Muitos e muitos anos atrás, antes que a Idade dos Mitos abrisse lentamente espaço para a Idade dos Ossos, antes que qualquer dos gigantescos répteis marchasse sobre a Terra, antes mesmo que evoluíssem as Fadas e os Elfos para povoar a nossa imaginação, já floresciam as papoulas. Elas ondulavam suavemente pelas colinas, enchendo de manchas vermelhas a relva verde que recobria o solo. As hastes das papoulas balouçavam lentamente ao sopro leve do vento. O sol de verão banhava alegremente as touceiras e se derramava sobre a relva como dedos quentes de carícia. Criaturas aladas com corpos de quitina zumbiam alegremente por entre as papoulas de corações vermelhos, margaridas acetinadas e boninas laranja de cor e perfume mais agreste.

Um pequeno grupo se movia, cautelosa, mas seguramente por entre as hastes rígidas das papoulas. Usavam roupas verde-musgo e pequenos capuzes avermelhados, cinturões largos de couro negro com tachas de prata, ouro ou cobre e botas também negras presas por fivelas douradas. Suas barbas eram longas e verdes sobre os rostos enrugados e corados de saúde, tinham orelhas pontudas recobertas por um pelo fino e esbranquiçado e narizes bulbosos, que reluziam entre olhinhos brilhantes que pareciam pequenas safiras. Eram nove ao todo, cada um carregando um pesado fardo às costas e longas lanças fabricadas com espinhos de árvores silvestres.

Andavam em fila indiana, menos dois que protegiam a retaguarda e que se moviam por entre a vegetação dos dois lados da trilha, enquanto o primeiro avançava cerca de doze passos à frente, mais como batedor do que como guia. Todos se moviam com pés que mais pareciam de veludo, sem sequer agitarem as folhas de relva ou as hastes das papoulas de modo mais perceptível do que o faria o mais suave dos zéfiros. Avançaram até meia altura da colina e, a um sinal do chefe, pararam todos, justamente onde as papoulas cresciam mais altas e mais densas, depondo seus fardos sobre o solo. Moviam-se o menos possível e falavam de forma tão suave que, caso houvesse algum observador, pensaria que se comunicavam tão somente por telepatia.

Um dos mais leves subiu agilmente por uma das hastes e, ao chegar ao caroço de que brotavam as pétalas escarlate com suaves rendilhados violeta perto do núcleo arredondado, passou habilmente uma laçada do que parecia ser um fio de seda, lançando as pontas aos que aguardavam em baixo e depois saltando com agilidade para ajudar os companheiros. Então todos, em um esforço conjunto, puxaram cuidadosamente e a haste se curvou sem que as pétalas sofressem o menor dano. O mais velho deles examinou a flor com atenção: bem no ponto, nem velha demais para que logo se desfolhasse, nem ainda cheia demais de néctar. As abelhas já a haviam visitado mais de uma vez. Um dos outros retirou um frasco de gargalo longo de um dos fardos, uma espécie de funil recurvo, enquanto outro abria o próprio fardo, desembrulhava um pequeno pacote e dele retirava minúscula semente amarelada.

Um terceiro duende aproximou-se com uma cabaça cheia de líquido. O chefe do grupo afastou as pétalas e sépalas, descobrindo um pequeno orifício bem no centro da coroa de pólen amarelado que recobria o guizo. Com imenso cuidado, derramaram duas gotas do líquido azulado no funil e a seguir, cheios de reverência, depositaram a semente minúscula, em que já se podiam adivinhar os detalhes de um corpinho em tudo semelhante aos dos duendes. A sementinha deslizou ao longo do líquido e desapareceu na abertura. A seguir, pingaram mais duas gotas do mesmo líquido, que deveria alimentá-la e protegê-la enquanto germinasse.

Como é de conhecimento comum, os duendes não precisam de casais para se reproduzirem, nem de guardarem sementes em um ventre, nem de perderem horas inúteis a chocar ovos. Na verdade, os ovos de casca rígida ainda estavam para evoluir e os seres que guardavam seus descendentes dentro de si até que estivessem prontos para enfrentar o mundo ainda se encontravam na cesta de possibilidades infinitas da evolução e talvez nunca chegassem a surgir. Porque essa ainda era a época dos mitos e a época dos ossos até então não havia chegado, embora os duendes já possuíssem um sistema nervoso e um cérebro bastante desenvolvidos.

As sementes dos duendes brotam de suas costas e tão logo estejam maduras, são levadas às papoulas para chocar ao calor do sol, dentro da casca artificial fornecida pelos caroços que envolvem os guizos, que na realidade, são dezenas de sementes da flor; quando o caroço resseca e acaba por rachar ou explodir sob o calor do sol, as sementinhas se espalham pelo solo e aquelas que forem mais favorecidas pela natureza se enraízam para produzir novas papoulas. Mas neste ambiente protegido, passadas apenas três semanas, tal como os humanos contam o tempo, cada duendezinho já estava forte o bastante para quebrar a casca vegetal e sair para o mundo, vagueando pelo meio das touceiras que lhe pareciam bosques, até encontrar seus irmãos mais velhos, o que fazia com um instinto infalível. Mesmo porque os adultos pressentem quando algum pequerrucho está para nascer e costumam estar por perto, mas em geral não interferem, porque é necessário que os jovens empreendam sua longa e perigosa viagem até demonstrarem que são fortes o suficiente para merecerem o direito de viver.

E não se pense que as papoulas são prejudicadas assim. Bem ao contrário, como os adultos escolhem cautelosamente a data da inseminação, passadas estas três semanas as pétalas já caíram, adejando ao vento e somente os caroços ainda permanecem no alto das hastes, com todas as sementes de papoula ainda retidas, à espera de que a chuva e o vento as libertem e espalhem pelo chão ou que bichinhos famintos venham roer os receptáculos, com a intenção de devorá-las. Tudo considerado, muito poucas são as sementes que chegam a cair na terra em condições de germinar.

Mas quando os pequenos duendes abrem passagem para a luz, a casca se racha de imediato, lançando à terra dezenas de sementinhas escuras que iniciarão igualmente a sua luta pela vida, enquanto outras permanecem grudadas ao corpo ainda oleoso das criaturinhas, que as espalham ao longo do caminho que percorrem até encontrarem suas colônias. Assim, os duendes e papoulas vivem inicialmente em simbiose, servindo uns aos outros. Muito embora, na realidade, do mesmo modo que os pássaros, insetos e bichinhos da terra devoram parte das sementes, tampouco muitos dos duendezinhos não conseguem jamais deixar a floresta das papoulas.

Uns estão muito fracos e morrem de fome ou de sede, enquanto outros encontram inimigos naturais e são devorados; uma boa parte se demora demais no caminho, antes de encontrar seus irmãos mais velhos e começam a criar cascas de quitina grossa e lustrosa, até que se transformam em besouros. No final, cerca de um em cada dez é alegremente acolhido por seus companheiros e inicia uma nova vida que, dependendo das circunstâncias, pode vir a ser muito longa. Os que se transformam em besouros são respeitados e até mesmo auxiliados, mas o que seria seu cérebro é absorvido para formar a casca brilhante e resistente de quitina ou os élitros, as asas sedosas que se escondem por baixo das asas duras que os protegem. Muitos são domesticados e servem como animais de carga para os duendes. Os demais empreendem suas vidas de insetos, que raramente ultrapassam uma estação, separando-se em dois sexos e aprendendo a pôr ovos em pequenas covas... Mas estes nunca voltarão a gerar duendes.

*** *** ***

Os nove duendes completaram sua tarefa, desprenderam a laçada com cuidado e logo a haste deu um salto, balançou algumas vezes e, finalmente, retornou à posição inicial. Sem mais demora, avançaram uns cinquenta de seus passinhos curtos e repetiram a operação. Já era o sexto dia da semeadura, tinham mais oito pela frente. Esforçavam-se para não perder nenhum dos pequeninos nódulos que um dia poderiam tornar-se duendes em tudo semelhantes a eles. Havia dezenas de outros grupos em outros setores da floresta das papoulas, realizando o mesmo tipo de operação, só que aqueles que se encontravam mais perto da beirada do bosque não deixavam sacudir as hastes; um ou dois se enroscavam enquanto os outros desprendiam a cordinha de seda e desciam aos poucos até o solo até que a haste voltasse ao lugar de antes sem chamar a atenção de olhos estranhos. Mas ali, bem no centro das touceiras, essa preocupação era desnecessária e até mesmo inútil porque, se aves estivessem dispostas a engolir os guizos ou a parti-los para devorar o conteúdo, o fariam de qualquer maneira.

Já ia em meio à tarde, mas os homenzinhos não pareciam demonstrar cansaço, nem mesmo os barbalongas, que já haviam vivido muitas estações. Sobe, enlaça, salta, pula, as pétalas se separavam ao toque das mãos calosas, os orifícios eram expostos, o líquido azul brilhante e viscoso se derramava na medida exata e mais uma semente de duende desaparecia para germinar. E assim continuariam até o entardecer, quando a luz incerta impediria mesmo seus olhos aguçados de perceber se determinada papoula tinha ou não as condições certas para cumprir a missão que lhe designavam.

Mas de repente, seus ouvidos começaram a escutar um zumbido à distância. Os duendes se entreolharam, ainda incertos. Abelhas seriam um estorvo, marimbondos seriam indiferentes, embora pudessem derrubar alguns deles do alto das hastes ou até mesmo esmagar algum caso decidissem pousar no solo, sem a menor preocupação pelas criaturinhas que encontrassem de passagem. Se fosse algum tipo de besouro, eram parentes, não os ajudariam em nada, mas tampouco os atrapalhariam. Mas se fossem...

“Vespas!...” gritou o mais velho dos anõezinhos. Aterrorizados, largaram de imediato a haste com que se ocupavam, que se agitou violentamente, até retornar à posição anterior, reuniram às pressas o seu material e desapareceram o mais depressa possível por entre as raízes da relva. Logo o zumbido aterrador aumentou e uma vintena de corpos brilhantes e multicores, esguios como as atletas do ar que eram, materializou-se no azul do céu, atroando os ares com seus zunidos, enquanto patrulhavam o bosque de papoulas de ponta a ponta, os ferrões rebrilhando como flores traiçoeiras. Súbito, uma delas mergulhou certeira e, dentro de alguns minutos, retornou aos ares, arrebatando em suas patas uma criaturinha viva, que ainda esperneava e se debatia, mas lentamente perdia as forças e se aquietava, anestesiada pelo aguilhão.

Não fora um deles, era um duende de um dos grupos que trabalhavam na periferia do papouleiro, mas as vespas se encarniçaram e uma a uma foi sentindo o calor dos pequenos corpos que se ocultavam o melhor que podiam e então descia em um mergulho mortífero. Nenhuma das vinte retornou sem sua pequena vítima, que nunca mais poderia ser salva, ainda que a aguardasse um certo período horrível de vida, sem água ou alimento, durante o qual seria o receptáculo do ovo fertilizado de uma daquelas vespas, o qual, ao descascar, a devoraria por dentro ainda viva antes de emergir para sua metamorfose em vespa adulta.

Na pressa, uma das pequenas sementes escapou do recipiente que a guardava e rolou no solo, sem ser percebida pelos duendes em pânico. E se o foi, não era importante o bastante para que se expusessem a um terrível destino somente para recuperá-la. Nem dariam por sua falta depois – havia tantas! Estaria destinada a servir de alimento aos vermes da terra ou a algum caracol ou então, a apodrecer aos poucos, sem a nutrição do líquido azul ou a proteção da casca grossa do guizo de uma das papoulas. Ou poderia ser catada por formigas, que a levariam para o interior de seu formigueiro, onde seria consumida pelo fungo que alimentava os pulgões de cuja secreção viviam as próprias formigas. Como estas, havia muitas, algumas vezes jogadas fora até de propósito, quando chegava o entardecer e o grupo de semeadores achava que já fizera o bastante para aquele dia.

A sementinha rolou, desatinada, batendo nas pedrinhas e galhinhos do chão, até que enfim parou. Oito olhos azuis a observaram atentamente, revezando-se em seu piscar, percebendo a fuga e a perda, notando exatamente o lugar em que parara, mas ainda mais atentos para os seres mortíferos e elegantes que zumbiam pelo céu, percorrendo toda a extensão do solo com olhos famintos e aguçados, já que além dos duendes, a maior parte de suas presas eram insetos, embora sua caça preferencial fossem as aranhas caranguejeiras.

No devido tempo, baixou o crepúsculo. As últimas vespas que haviam capturado suas presas, pousando embaixo de folhas de arbustos enquanto aguardavam os incautos que saíam de seus esconderijos pensando haver passado o perigo, talvez umas seis ou sete, voltaram carregadas para seu ninho, completada a patrulha. Só então os oito olhos azuis se moveram em uníssono, fitando novamente o local em que tombara a pequena semente, saindo com cuidado de sua toca cavada no solo macio... e uma criatura dourada, enorme em comparação com os duendes e até maior que as vespas, movimentou-se com agilidade, recolhendo a sementinha e levando-a para a cova de onde saíra.

Um pouco mais tarde, já que enxergava no escuro ainda melhor que os duendes, depois de certificar-se de que não havia mais perigo, subiu pela haste da papoula intocada mais forte que encontrou pelas redondezas, a qual se curvou pela ação de seu peso, segurou a flor com duas patas, separou as pétalas e expôs o orifício com outras duas, depositou nela a sementinha, recoberta com sua própria saliva, que era tão ou mais nutritiva que o licor azul e dobrou cuidadosamente as pétalas sobre a abertura, costurando-as firmemente com um fio branco e sedoso que brotava de sua boca. Finalmente, tendo a certeza de que fizera um bom trabalho, a aranha dourada desceu para o solo, a fim de iniciar a sua própria caçada noturna.

*** *** ***

No dia seguinte, a madrugada ainda não totalmente substituída pelo orvalho, os duendes sobreviventes voltaram, para repetir a semeadura centenas de vezes até que, no calor do meio-dia, as vespas surgiram novamente. Este ano, elas haviam aparecido muito mais cedo que de costume e não sabiam se seria possível plantar todas as sementes. A cada dia a tarefa se tornava mais perigosa, algumas vezes as vespas já adejavam cedo de manhã e não desistiam enquanto não capturavam um dos duendes ou outra criatura viva para nela porem seus ovos.

A tragédia final ocorreu no décimo-terceiro dia. O duende mais velho que chefiava o grupo, mais ousado ou quiçá querendo assumir o risco de preferência a expor um dos mais jovens, trepou por uma das hastes, já quase no topo da colina, pensando que todas as vespas já tinham ido embora. Talvez já estivesse cansado e desatento depois de um longo dia de trabalho, quem sabe fosse a idade que diminuíra a percepção de seus olhos e ouvidos, quiçá fosse o odor pesado e soporífero exalado pelas papoulas no final da tarde que o tivesse levado a relaxar a guarda. Não percebeu uma vespa que se achava de tocaia todo esse tempo ou que talvez tivesse perdido a presa que primeiro atacara. De repente, ante o olhar aterrorizado dos demais, mergulhou sobre a criaturinha, agarrando-a firmemente com as patas dianteiras, enquanto o abdômen se curvava em um rápido movimento e cravava o ferrão uma única vez, alçando voo de imediato, antes que o restante do destacamento pudesse esboçar o menor gesto de defesa, levando consigo a vítima inerme, mas ainda viva e perfeitamente consciente, para o grande castelo de cera e de barro que as vespas haviam construído na copa do velho carvalho.

Naquela noite, os duendes reuniram a Assembleia, todos os grupos congregados, muito sérios, as expressões dos rostos pontiagudos mostrando a preocupação com a gravidade da decisão que teriam de tomar. Acenderam seus fogos azulados, como os acendem até hoje e que alguns chamam de fogos-fátuos, outros de Fogo de Santelmo, outros ainda até de Boitatá, mas que os cientistas cismam em afirmar serem apenas a luminescência que se forma das folhas em decomposição nas zonas pantanosas... Suas fileiras tinham sido dizimadas e muitos não compareceriam nunca mais. Eram talvez quinhentos, representando todas as colônias em um raio de muitos quilômetros, mas que tinham em comum o solo sagrado de sua reprodução representado pela mata das papoulas.

Cantaram e dançaram, como era de praxe. A esta hora, nenhuma vespa sairia de seus vespeiros. Mas suas canções eram nessa noite cantilenas sem alegria e suas danças desprovidas de todo o entusiasmo, mal chegavam a saltar no ar nas piruetas e acrobacias de costume... Cumpridos os rituais devidos aos mortos e às Borboletas, o Vice-Secretário-Geral deu início à Assembleia.

O principal assunto em pauta era a captura de Hector, o velho Secretário-Geral que fora o último duende a ser capturado, cujo grito débil ainda ecoava na mente de todos os que haviam assistido a seu infortúnio. Esse ano trinta e cinco duendes tinham sido levados pelas vespas, o que não era totalmente inesperado, porque a semeadura era uma tarefa perigosa, mas em média esse destino acometia somente a uns cinco ou seis deles por estação, embora nenhum esperasse conscientemente sofrer o trágico destino de aguardar durante semanas até que os ovos descascassem e então fossem devorados vivos pelas larvas famintas das vespas.

Libertar Hector e os outros desgraçados do Castelo era tarefa impossível, mas a decisão não era essa. Deveriam interromper a semeadura? Havia vespas demais, cedo demais, o perigo era demasiado grande. No ano anterior, uma nuvem de gafanhotos voara sobre a região e centenas deles tinham sido capturados pelas vespas, que os atacaram com sanha tal que os insetos alados haviam desistido de pousar e assim outro perigo fora afastado, a relva e as papoulas haviam permanecido praticamente intactas e os duendes haviam semeado com bastante alegria, embora tivessem de combater as formigas e cupins em batalhas ferrenhas, nas quais muitos haviam perecido.

Mas agora ainda restavam milhares de sementes para plantar, cada uma delas um irmão que não nasceria. Isto seria um desastre, somado ao fato de que, dos milhares que já haviam sido albergados no caroços dos guizos, somente um décimo sobreviveria, resultando em um significativo decréscimo de sua população. Se não houvesse fogo ou outro desastre natural, dentro de algumas semanas poderiam saudar centenas de jovens corajosos para formar a próxima geração. Mas somente um em dez, ou mesmo um em vinte, chegava a se tornar adulto. Não eram apenas as vespas, havia lagartas, centopéias e lacraus e, pior ainda, apesar de terem destruído dezenas de formigueiros e casas de cupins no ano anterior, a custo de tanto sacrifício, já haviam identificado diversos formigueiros e cupinzeiros novos, cujas formigas negras ou brancas já estavam à espreita. Teriam de escolher entre destruir estes novos ninhos ou prosseguir com a semeadura e ambas as tarefas ocasionariam muitas mortes ainda.

Finalmente, a decisão foi tomada. Seus pequenos instrumentos começaram a tocar e novamente dançaram e cantaram, mas suas melodias mais melancólicas e lamentosas ainda do que antes. Uma procissão soturna chegou, trazendo grandes fardos arredondados, que foram sendo abertos um a um. De coração pesado, os duendes devoraram todas as sementes que ainda restavam. Assim, volveram para suas colônias, cada grupo recebendo a localização dos formigueiros que deveriam atacar durante as próximas noites, quando os insetos estavam mais inertes, como precaução contra futuros ataques no momento em que os duendezinhos começassem a descascar, boa parte deles alimentando a intenção secreta de quebrar os costumes e ajudar os mais fracos e demorados na difícil tarefa de cruzar a mata das papoulas até a segurança, embora suas leis determinassem que deveriam permanecer nas orlas do bosque a fim de acolherem somente os mais resistentes.

*** *** ***

Enquanto isso a aranha, que atendia pelo nome de Miraflores, não permanecera ociosa. Bem ao contrário dos duendes, preocupados com o conjunto, mas indiferentes ao fato de um determinado indivíduo viver ou morrer, Miraflores subia todas as noites pela haste de sua papoula, com o devido cuidado para que não balançasse demais, levantava as pétalas cerradas e observava como se desenvolvia o seu pupilo. Sempre lhe deixava um pouco de alimento que de suas próprias glândulas soltava. Depois, fechava cuidadosamente as pétalas de novo com fios de teia. Mas enquanto trabalhava, seis de seus oito olhos percorriam cuidadosamente o espaço ao redor, nem tanto pelas vespas, que adormeciam à noite, mas porque havia muitas outras criaturas capazes de atacá-la, pois sua carne era bastante saborosa e os seus predadores naturais sabiam muito bem disso. Se fosse capturada, não somente morreria, como a criaturinha não teria mais quem velasse por ela.

Depois de mais três semanas, as pétalas murchas e ressequidas da papoula somente permaneciam no lugar por estarem presas por fios de teia. Do alto da haste, Miraflores podia perceber que a grande maioria das outras hastes já perdera as suas, enquanto um leve som de guizos abafados se escutava a cada lufada de vento. Também a maioria das boninas e margaridas já murchara no calor árido desse ano, embora sempre houvesse as retardatárias, que brotavam mais tarde e pintalgavam a colina de amarelo, branco e laranja. Enquanto isso, os primeiros dos caroços já se haviam partido e duendes minúsculos, os chamados pequerruchos, já vestidos de verde e de vermelho, escorregavam para o chão em busca de seus companheiros.

Muitos tinham mau destino. Alguns caíam mal e feriam os pequenos e frágeis membros na queda, outros encontravam escorpiões e escolopendras que os devoravam, já conhecendo o período da eclosão de suas sementes; outros se feriam ao longo do caminho, ou morriam por não acharem água ou alimento. Mas patrulhas furtivas de duendes apareciam às vezes ao crepúsculo ou antes do amanhecer, sob os olhares divertidos de Miraflores, que lhes conhecia os costumes e sabia estarem quebrando suas antigas leis, a fim de apanharem alguns de seus irmãozinhos antes que perecessem na viagem...

As vespas praticamente já haviam completado sua temporada de caça, mesmo que não se interessavam por criaturinhas tão pequenas, sem carne suficiente para alimentar suas larvas, mas havia abundância de predadores que não desdenhavam suas polpas tenras... Chegavam grilos, louva-a-deuses, escaravelhos, até mesmo besouros-de-chifre adultos, embora fossem parentes tão chegados. Miraflores sacudia a cabeça. Em seu próprio gênero, não era desconhecido o fato de adultos devorarem os próprios filhotes ou, com mais frequência, os filhotes de outras fêmeas, mas isso era realmente coisa daquelas desprezíveis aranhas de teia. As aranhas de toca somente comiam as crias que morriam ou que estavam muito fracas para sobreviver.

A sorte é que havia tantas pétalas de papoula espalhadas pelo solo que as formigas estavam por demais ocupadas com elas para se interessarem pela caça aos duendezinhos, que teriam de ser mortos e desmembrados antes de poderem ser transportados para seus formigueiros, enquanto qualquer formiga era capaz de carregar uma folha vinte vezes mais pesada do que ela, sem a menor dificuldade e nenhuma folha ou pétala era capaz de lutar, enquanto algumas daquelas criaturinhas já nasciam com tanta vontade de viver que eram capazes de espantar ou até mesmo aleijar formigas. Mas Miraflores também notou, com uma certa surpresa, que esse ano havia muitos menos formigas e que suas tocas ficavam muito distantes... Trabalho dos duendes, com certeza.

*** *** ***

Miraflores ergueu a cabeça com orgulho. Nada havia de acontecer ao “seu” menino! Então, com um arrepio, percebeu uma lagarta gorda subindo lentamente pela haste de uma papoula cujo caroço ainda não rebentara. Esquecera-se delas! Por um momento, pensou em fazer alguma coisa, mas deu de ombros. Primeiro tinha de defender o que era seu. E assistiu com nojo enquanto a lagarta prosseguia em seu caminho lento e seguro até o alto da papoula, de onde as pétalas já haviam secado e caído. Então, por longos momentos, suas mandíbulas ficaram roendo a casca e Miraflores pareceu escutar um grito agudo de terror, o que era impossível devido à distância, mas logo a lagarta introduziu a cabeça no interior do guizo, a haste tremeu violentamente, depois enfiou metade do corpo fusiforme, e foi entrando aos poucos, na medida em que seu corpo substituía o antigo conteúdo... E logo sua visão periférica percebeu que surgiam outras, parecendo escolher instintivamente as papoulas cujos caroços ainda estavam ocupados.

Para horror de Miraflores, uma lagarta gorda, verde e rosada, cheia de pelos pontudos, começou a subir pela haste em que ela mesma estava empoleirada. Não lhe constituía uma ameaça e não temia por si, mas “seu” garotinho!... Voltou sobre si mesma e desceu até meio caminho da haste, abatendo a agressora com um único golpe de suas mandíbulas. Aproveitou para alimentar-se, mas nem havia comido um bocadinho, já outra lagarta surgira e começara a subir pela haste. A aranha derrubou sua presa no solo e aguardou a chegada da outra, que teve o mesmo destino, mas outras mais já se aproximavam, como se todas tivessem escolhido justamente a haste de papoula que defendia... talvez atraídas pelo cheiro emanado pelas carcaças das que haviam morrido.

Miraflores desceu até o chão para combater com mais segurança. Ela lutou toda a manhã, seus longos pelos louros manchados de verde e rosa e da linfa amarelada das criaturas, até que, quando o sol já ia alto, as agressoras pararam de chegar. Miraflores estava exausta e descansou um pouco, antes de começar a comer para restaurar as forças, mas logo uma cabeça triangular e negra apareceu entre as hastes do capim, roçando as patas dianteiras e movendo as antenas recurvadas. Logo surgiram outras e mais outras e Miraflores, prudentemente, tornou a subir pelo caule da papoula, enquanto um bando voraz de formigas dividia entre si os despojos das dez ou doze lagartas que ela matara e logo os carregava, sem demonstrar interesse pela haste desnuda.

As lagartas voltaram logo que o calor diminuiu um pouco e a carnificina recomeçou, durando o dia todo. Embora as formigas atacassem e matassem uma parte delas, a maioria não dava a mínima atenção, seguindo certeira para as hastes ainda ocupadas pelos duendes que não haviam descascado. Miraflores imaginou quantos dos pequenos duendes haviam conseguido escapar. Muito poucos, certamente, talvez apenas aqueles levados pelas patrulhas furtivas... Então, do fundo de sua mente, recordou que aquele horrível espetáculo ocorria todos os anos... Por sorte, os duendezinhos não nasciam todos no mesmo dia... Mas por que as lagartas eram tão numerosas nessa estação? Será que fora culpa dos próprios duendes, que haviam destruído tantos formigueiros?

Pelo meio da tarde, começou a lançar jatos de saliva contra as hastes mais próximas, que logo se condensavam em fios de teia. Embora fosse uma aranha caçadora e não um reles aracnídeo de teia, já estava exausta de sua posição. E então, escutou um estalo que vinha de cima. Num instante, passou-lhe todo o cansaço e subiu apressuradamente até o caroço partido e acolheu a criaturinha, que se esforçava por sair, um perfeito pequerrucho de duende, já vestido de verde, com as pernas envoltas por botinhas negras com fivelas e um minúsculo capuz encarnado sobre a cabeça. Tomando em seus braços, ou mais exatamente, em suas duas patas dianteiras a criazinha ainda tonta pelo esforço, Miraflores desceu depressa pela haste ainda gosmenta do ícor das lagartas que matara, fazendo com que vergasse pelo efeito de seu peso e fosse parar alguns centímetros além do círculo atarefado das formigas, que recolhiam os restos do banquete, achando depressa o caminho de sua toca, onde se enfiou com toda a segurança, fechando a entrada com uma tampa de barro reforçada por galhinhos colados com sua própria saliva.

Durante vários dias, Miraflores cuidou e alimentou o pequeno duende, protegido do frio por um casulo de sua própria teia, alimentado com leite de aranha, néctar de boninas e margaridas e com o sumo dos insetos mais saborosos. Depois de uma semana, já perfeitamente capaz de romper o casulo e andar ao redor da cova, permitiu-lhe sair para ver o mundo, mas sem tirar os olhos de cima dele. Comunicava-se com ele por meio da linguagem dos duendes, a qual todos já nascem sabendo, mas o rapazinho somente a olhava com olhos imensos e confiantes e nada dizia. Mas no undécimo dia, moveu a boquinha com esforço e balbuciou, ainda hesitante:

“Quem sou eu?”

E Miraflores moveu os palpos no que pretendia que fosse um sorriso:

“Ora, meu querido, tu és o meu filho. Tu és Teruel...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 19/07/2011
Código do texto: T3104098
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.