Vovô flatulento

- Vô Sinésio conte uma história pra nós.

- Conta Vô!

- É mesmo vô, conta! - imploraram os três sapecas netinhos: Jessé, de seis anos; Paulinho de cinco; e Bruno de quatro ao avô, brincando com eles no sofá.

- Vocês querem que eu conte a história da onça que quase me almoça? - perguntou o solícito Vovô.

- Queremos - responderam os netinhos.

- Por pouco eu não estava aqui agora para contar a história pra vocês - completou o avô, imprimindo um tom de dramaticidade ao episódio.

Sinésio começou a satisfazer ao pedido dos netinhos que estavam com olhos grudados nele e ouvidos bem abertos escutando, atentos, o intróito da história da tal onça pintada. Mas foram momentaneamente interrompidos por um sonoro estrondo no sofá, interrompendo o relato.

- Vovô, você ouviu um ronco? - indagou Paulinho.

- Ouvi Paulinho - respondeu o avô.

- O que terá sido isso, vovô? - perguntou Jessé, o mais velho dos três.

- Acho que foi uma rã. Vamos procurar a infeliz. Ela deve estar debaixo do sofá. Sugeriu o Avô.

Imediatamente os três netinhos, ajudados pelo avô, levantaram o sofá de perna pra cima e fizeram uma varredura em todo ele, nada encontrando.

- Vô, aqui não tem rã nenhuma - falou Paulinho.

- Tem. Ela se escondeu tão bem escondida que vocês não acharam, mas a gente ainda pega essa danada. Vocês vão ver - falou o cínico do avô.

Recolocaram o móvel no lugar e se sentaram ao lado do avô.

– E a história da onça Vô? Conta logo! - imploraram.

- Vou contar, mas prestem bem atenção. Foi assim: eu fui caçar lá pras bandas da Serra da Temerosa. Levei comigo uma espingarda velha de socar e um facão. Eu ia caminhando na mata, por uma trilha, quando de repente uma enorme onça pintada saltou na minha frente.

- E aí Vô, o que aconteceu? - perguntou Paulinho, bastante curioso.

- Aí ela franziu a testa, arreganhou os dentes e deixou bem à mostra os grandes caninos! Aqueles dois dentões da frente, parecidos com dentes de vampiro. Quando vi aquela fera diante de mim, fiquei todo arrepiado e logo supliquei ao altíssimo: - “Valha–me Deus!”.

Enquanto o Avô falava aos netinhos, ouviu-se o ribombar de outro sonoro flato, espremido entre ele e o sofá.

- A danada da rã voltou. Dessa vez ela não escapa. Vamos pegá-la - falou vovô Sinésio dando um ar de seriedade ao fato.

Os pirralhos mais uma vez foram à luta, a fim de dar cabo ao insistente batráquio. Vasculharam todo o sofá e mais uma vez nada encontraram.

- Não encontramos a danada não, vovô - falaram em uníssono os netinhos.

– Não há de ser nada, ela ainda vai aparecer e a gente vai fazer a festa. Vamos jogar sal grosso nela. Ela vai nos pagar caro – disse o avô.

- Vô, e a onça? - perguntou o atento Bruno.

- Deveras, eu já ia me esquecendo da danada da onça. Também essa rã toda hora aparece para atrapalhar a nossa história. Como eu estava dizendo a vocês, ela arreganhou os dois dentões de vampiro e partiu pra cima de mim. Aí eu atirei nela com a socadeira, mas ela saltou para o lado e eu perdi o tiro. Ela investiu novamente e quando avançou em minha direção, eu já estava com o facão na mão. Saltei de lado e quando ela passou voando em minha frente cortei de um só golpe, todas as garras de sua pata direita. Quando ela pisou em terra firme e deu por falta das garras, enfureceu-se mais ainda. Arreganhou novamente os grandes caninos e avançou pra cima de mim. Dei-lhe algumas panadas de facão, mas ela não desistiu. Continuou investindo sobre mim e, numa dessas investidas, cortei todas as garras da pata esquerda.

- Vô, você é terrível! - falou Jessé, radiante com a valentia do avô.

- E aí Vô o que aconteceu depois? – indagou Paulinho.

- Aí eu pensei que a fera recuaria e a batalha seria dada por encerrada. Qual nada, para a minha surpresa ela olhou para as patas, agora todas duas sem as garras, e ficou mais enfurecida, avançando sobre mim mais uma vez.

Subitamente irrompeu no sofá uma nova explosão flatulenta e os meninos gritaram:

- Vô a danada da rã voltou!

O avô, sem perda de tempo, atiçou os netinhos à caça. Os garotos ávidos por ouvir o desfecho da mirabolante história, levantaram o sofá, viraram novamente de pernas pro ar e nada da rã. Já exaustos, entregaram os pontos. Deram-se por vencidos.

- Olha Vô, essa rã não existe. Você está enganando a gente - falaram decididos.

- Existe sim. Vocês não souberam procurar.

- Vovô deixe essa rã pra lá. Ela não vai aparecer mesmo. Melhor você terminar logo essa história da onça - falou Jessé.

- É mesmo vô - falaram os outros dois netinhos.

- Ta bem, tá bem - respondeu Vovô Sinésio, recomeçando a história de imediato, conforme pedido pelos netos.

- Como eu estava dizendo, a onça já estava sem as garras das duas patas e investiu novamente contra mim. Desta vez veio com tanta ferocidade que chegou a botar a língua para fora. Aí, eu tirei o corpo de lado e quando ela passou voando à minha frente, segurei a língua dela com toda força que Deus me deu e puxei.

- E aí Vô o que aconteceu? – perguntaram os netinhos.

Puuuuum! Novo estrondo ouviu-se vindo do sofá e antes mesmo do avô mandar caçar a rã, os meninos saíram em diligência, virando e revirando o sofá. O intuito era o de apressar o desfecho da história. Nada encontraram e deram uma prensa no avô.

- Essa história não termina nunca, vô? - indagou Jessé.

- É mesmo vô. Termina logo com isso - falou Bruno.

- Termina logo, completou Paulinho.

Diante do ultimato dos netinhos, Sinésio decidiu pelo remate da história.

- Como eu havia dito a vocês, puxei a língua da fera com toda força que Deus me deu. Botei tanta força, mas tanta força, que a onça virou pelo avesso. O coração, os pulmões, o fígado e as tripas ficaram pro lado de fora.

- “Poxa” Vô, como você é valente! Eu queria ser assim como você - falou Bruno.

- Pois foi assim. E quando ela se viu naquele estado deplorável, a raiva dela aumentou e, mais uma vez, partiu pra cima de mim. Novamente agarrei a sua língua com toda força, puxei e revirei a danada pro lado certo. Quando ela se viu novamente como onça pintada, percebeu ter sido desmoralizada e notando não poder lutar comigo, entregou os pontos. Deu a luta por encerrada. Fugiu e se embrenhou mata adentro, nunca mais sendo vista nas redondezas da Serra da Temerosa.

- Será que ela morreu vô? - indagou Jessé.

- Só Deus sabe filho – respondeu o avô.

- E a rã vô? - perguntou Bruno.

- A rã saiu do sofá, camuflada de vento, e passou por vocês sem ser percebida – decretou o cínico do Vovô Sinésio.

Texto publicado no livro "O Homem que invultava e outros causos", de minha autoria.

Valmari Nogueira
Enviado por Valmari Nogueira em 20/12/2010
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