O poder da persuasão

- Senhor, atrapalho? - Indagou hesitante Tom Lazarus, o contínuo da 9ª delegacia de polícia, assomando à porta aberta da sala penumbrosa de Vernon Liddiard. O chefe dos inspetores, que parecia dormitar em sua cadeira de rodízios inclinada para trás, o rosto anguloso banhado pela luz amarelada de uma luminária de mesa, abriu imediatamente os olhos negros e fez um gesto para que o rapaz entrasse.

- De modo algum, Tom. O que tem para mim? - Questionou.

- O seu holerite, senhor - anunciou o contínuo, exibindo um envelope de papel autocopiativo para o inspetor.

- Sim, dia do pagamento - murmurou Liddiard, apanhando o documento e rasgando-o com um abridor de cartas que lembrava uma adaga. Examinou os valores e ergueu os sobrolhos.

- Algum problema, senhor? - Sondou Lazarus, que ainda não saíra do batente da porta.

- Nada que seja da sua conta - replicou acidamente Liddiard, enxotando-o com um gesto de mão.

Seguiu o contínuo com o olhar, enquanto este voltava a passos rápidos pelo corredor que ligava o gabinete ao salão principal da delegacia. Finalmente, tirou do gancho o telefone sobre a mesa, e discou três números.

- Maggie? Tom acabou de me entregar o holerite... que brincadeira foi essa?

A voz da chefe do departamento de pessoal soou calma em seu ouvido:

- Desculpe, Vernon, mas a ordem pra cortar veio do gabinete do novo chefe de polícia. Está fazendo contenção de despesas.

- Ah, tinha que ser ideia desse garoto... como é mesmo o nome dele?

- Goodman. Leslie Goodman.

- Goodman... pois ele não sabe o salseiro em que está se metendo. Vocês do DP nunca ouviram falar em "direito adquirido"?

- Ouvimos, - suspirou Maggie - e a chefatura tem um bom departamento jurídico. Se cortaram o adicional, deviam saber o que estavam sabendo. E não foi somente o seu, você sabe... fizeram isso com todos os que estão na sua condição.

Liddiard arreganhou os dentes num sorriso feroz.

- Você quer dizer, eu e Enos Sinkler? Pois todos os demais já saíram da força... ninguém tem paciência de ficar tanto tempo na polícia, ganhando essa miséria.

- E o que você pretende fazer, Vernon? - Indagou pacientemente Maggie.

- Certamente não pedir aposentadoria, - redarguiu com firmeza Liddiard - se era isso o que Goodman pretendia.

- Você pode entrar com uma queixa formal - sugeriu a chefe do DP. - Talvez ele tenha pensado que era algum outro Liddiard.

- Não - replicou o inspetor. - Duvido que não saiba quem eu sou.

E tamborilando na mesa:

- Mas talvez nunca tenha me encontrado pessoalmente. Creio que está na hora de compensar isso e pagar-lhe uma visitinha...

* * *

A noite já havia caído quando Goodman, o chefe de polícia, saiu da chefatura pela entrada principal. A caminho do estacionamento, onde deixara seu automóvel, percebeu que estava sendo seguido por um homem de sobretudo e chapéu escuros, com uma echarpe de lã cinzenta enrolada ao redor do pescoço.

- Chefe Goodman? - Indagou o tipo.

Instintivamente, o chefe de polícia levou a mão ao coldre de ombro sob o paletó, onde levava a pistola de serviço, mas o homem ergueu a mão direita enluvada em saudação:

- Sou o inspetor Vernon Liddiard, da 9ª delegacia.

- Liddiard... - murmurou Goodman intrigado.

- O do adicional noturno. Que o senhor mandou cortar - explanou Liddiard.

- Sim, estou lembrado - admitiu Goodman. - Bem, Liddiard, estamos com problemas financeiros e eu tive que cortar alguns privilégios.

- Privilégios? - Liddiard ergueu os sobrolhos. - Eu trabalho à noite! Mereço receber meu adicional noturno.

- Naturalmente, Liddiard... se você fosse um agente comum - contemporizou Goodman, erguendo as mãos. - Ocorre que você, por conta da sua... hum... condição médica... só pode trabalhar à noite, não é mesmo?

A silhueta escura de Liddiard pareceu ficar maior ao ouvir àquelas palavras.

- Condição médica? O senhor sabe como eu adquiri a minha condição médica?

E quase encostando o rosto no do chefe de polícia:

- Eu fui morto em serviço, chefe Goodman!

* * *

- Senhor?

Tom Lazarus encontrou Vernon Liddiard completamente desperto e em mangas de camisa encostado na quina da mesa da sala penumbrosa, o copo que servia de tampa de uma garrafa térmica na mão. Dentro dele, um líquido escuro e espesso, fumegante. Obviamente, não era café.

- O que tem para mim hoje, Tom? - Indagou o inspetor, tomando um longo gole do líquido com os olhos semicerrados.

- O seu holerite, senhor - anunciou solenemente o contínuo.

E, diferentemente do mês anterior, não esperou para ver a reação do policial, retirando-se tão logo entregou o envelope. Liddiard acabou de beber a sopa negra - pois era disso que se tratava - e só então abriu o holerite com o abridor que imitava uma adaga. Ergueu os sobrolhos, mas sua expressão agora era de tranquilidade.

- O adicional de volta mais o atrasado do mês anterior - comentou consigo mesmo, balançando a cabeça num gesto de apreciação.

E, apanhando a garrafa térmica, serviu-se de mais uma generosa dose de sopa negra como que para comemorar o seu poder de convencimento.

- [10-08-2023]