Silhueta

Vanessa havia me convidado para almoçar em seu novo apartamento alugado e mobiliado, que ela me descrevera como uma experiência transformadora.

- O lugar é tão bom assim? - Questionei, quando ela me ligou para fazer o convite.

- Venha ver por si mesma - replicara ela.

E eu fui. A localização era boa, próxima de uma estação do metrô; uma estação pequena, não uma daquelas que atraem dezenas de milhares de pessoas nos horários de pico. O bairro era de classe média tendendo para alta e havia uma boa variedade de estabelecimentos comerciais ao redor: restaurantes, cafeterias, supermercados, clínicas e postos de gasolina. Quanto ao apartamento em si...

- O prédio não tem elevador - constatei ao chegar. Vanessa morava no último dos quatro andares.

- Acho que não vou poder convidar nenhum cadeirante - comentou em tom de gracejo, fazendo um gesto para que eu entrasse.

O apartamento, como o prédio, era antigo, mas confortável. E estava cheio de plantas, quase uma estufa tropical em escala reduzida. Eu nunca percebera antes esse amor pelo verde em Vanessa.

- Combina com o apartamento, Elisa. Eu, particularmente, gosto. - justificara-se, enquanto me mostrava os cômodos: sala, dois quartos pequenos, cozinha, banheiro, quarto de empregada, área de serviço com outro banheiro minúsculo.

- Imagino que não possa se afastar muito dele, agora que virou mãe de planta - observei ao voltarmos à sala, num tom que esperava não soasse demasiadamente crítico.

- Não, eu não tenho saído muito - admitiu. - Felizmente, posso trabalhar à distância e o comércio do bairro é excelente. Vamos almoçar?

- Vamos - assenti.

Vanessa trouxe os pratos da cozinha para a mesa da sala. A comida estava bastante apetitosa e me senti impelida a elogiá-la.

- Finalmente, você aprendeu a cozinhar. Já não era sem tempo.

Vanessa abriu um sorriso caloroso.

- Não fui eu, Elisa. Foi a Itziar.

- Quem? - Indaguei, erguendo as sobrancelhas.

- Itziar - repetiu ela. - Cozinha divinamente.

- E quem é a Itziar?

- Eu divido o apartamento com ela - disse Vanessa de modo vago.

- E por que ela não está aqui para que eu a conheça? - Questionei.

- Itziar é tímida, fica constrangida com estranhos - respondeu Vanessa.

- Eu não sou uma estranha, Vanessa - repliquei. - Se fosse, você não teria me convidado.

Vanessa não respondeu e mudou subitamente de assunto. Achei melhor não insistir, embora a história toda me parecesse bem esquisita. Depois do almoço, quando fui ajudá-la a retirar a mesa e levar a louça para a pia, pude observar que havia vários adesivos coloridos colados na geladeira, com anotações escritas numa letra angulosa que não reconheci como de Vanessa. Então, a tal Itziar existia mesmo, concluí.

- Retirar o lixo às terças, quintas e sábados à noite - li um dos adesivos em voz alta.

- Às vezes eu esquecia - justificou-se Vanessa. - Não mais.

Havia anotações para compras de mês, para consultas médicas, pagamento de contas. Itziar parecia ser uma pessoa bastante organizada e pelo visto mantinha Vanessa na linha.

- Não dá para escapar da Itziar, não é? - Gracejei.

Vanessa me olhou com desconfiança e desta vez, fui eu quem mudou de assunto.

Duas semanas depois, num fim de tarde, estava resolvendo assuntos de trabalho no bairro de Vanessa e resolvi levar um presente para a casa nova. Comprei um gnomo de porcelana e toquei a campainha do apartamento dela.

- Oi, Vanessa, é a Elisa - identifiquei-me pelo interfone.

Do outro lado, uma voz monótona respondeu:

- Elisa? A Vanessa não está. Volte noutra hora.

Franzi a testa.

- É a Itziar? Eu sou amiga da Vanessa, trouxe um presente pra ela; só quero entregar.

- Desculpe, Elisa, mas Vanessa me disse para não receber ninguém enquanto ela estiver fora.

E desligou o interfone na minha cara.

Não me dei por vencida e resolvi tocar a campainha do apartamento ao lado do de Vanessa. Uma mulher com voz cansada atendeu.

- Desculpe o incômodo, mas estou tentando falar com uma amiga que mora no 405, e uma pessoa estranha atendeu - expliquei.

- Qual é o nome da sua amiga? - Perguntou a mulher, desconfiada.

- Vanessa.

- Não mora nenhuma Vanessa no 405 - replicou a mulher.

Uma súbita luz fez-se em minha mente.

- E Itziar? A senhora conhece Itziar?

- É a moradora do 405 - admitiu a mulher. - Ela já mora aqui há muitos anos.

Como assim, "há muitos anos", perguntei-me atônita. Mal fazia um mês que Vanessa se mudara para lá!

- Mas a senhora sabe se ela tem uma inquilina? - Questionei.

- Você faz muitas perguntas - retrucou a mulher, antes de também desligar na minha cara.

Fiquei ali, na calçada em frente ao prédio, olhando para o quarto andar sem saber o que fazer. Subitamente, a luz na sala do 405 acendeu-se e uma silhueta surgiu à janela, por trás das cortinas. Eu não conseguia distinguir quem era, mas o vulto parecia olhar em minha direção. Instantes depois, sem que a silhueta se movesse, a luz apagou-se.

- [09-05-2023]