O tratador

Eu já havia matado antes; não precisamente naquela estrada, mas numa estrada como aquela, onde o tráfego é raro, não há cidades próximas, e estradas vicinais levam para lugares ainda mais desertos e desabitados, onde você pode abrir uma cova sob as árvores sem ser perturbado. Minha caminhonete não chamava a atenção; quem me visse passar, provavelmente pensaria em mais um rancheiro dirigindo para casa ou indo ao vilarejo fazer compras. E os caroneiros... bem, eles ficavam satisfeitos quando alguém parava e lhes permitia viajar na cabine, em vez da caçamba.

- Você confia nas pessoas, - declarou-me certa vez um sujeito - isso é raro de se ver hoje em dia.

- Eu não paro para qualquer um - assegurei. - Na verdade, avalio sempre se posso ou não levar alguém comigo.

- Faz essa avaliação a partir do momento em que a pessoa levanta o polegar? - Questionou ele, curioso. - Você pensa rápido!

- Reflexos rápidos são a chave da sobrevivência - repliquei. Raramente alguma das minhas vítimas tinha reflexos rápidos; por isso, todas morriam, é claro.

Meus pensamentos foram interrompidos pela visão de um homem jovem, mochila nas costas, polegar erguido à beira da estrada. Estava de costas para o poente, portanto eu só via a silhueta dele. Mas decidi parar assim mesmo; parecia uma presa fácil.

- Só vou até a cidade mais próxima - alertei, projetando a cabeça pela janela do veículo.

- Tá bom pra mim! - Replicou, dando a volta pela frente da caminhonete e entrando pelo lado do carona.

O fato de não ter perguntado antes se podia viajar na cabine, deveria ter chamado a minha atenção, mas eu estava relaxado; seguimos viagem, rumo a um horizonte dourado e vermelho.

- Você não é daqui, não é? - Indagou o caroneiro com um sorriso cintilante.

- Não. Por quê?

- O pessoal daqui não costuma dar carona a gente descalça - replicou, olhando para os próprios pés.

Olhei de relance na direção deles, e só então percebi que não eram exatamente pés, mas patas cobertas de pelos escuros, com unhas amareladas que lembravam garras.

- Você vai me matar? - Indaguei calmamente.

Ele fez um gesto negativo.

- Você está me alimentando com almas; por que eu mataria você?

Mais adiante, havia uma estrada de terra que levava a qualquer lugar desolado. Ele me avisou que iria descer ali e desapareceu no mato, mais adiante. Fiquei ainda alguns minutos, parado no acostamento, depois voltei à estrada.

A noite estava caindo, era hora de alimentar o monstro.

- [21-05-2021]