ALMA DESNUDA

Medeia era daquelas mulheres que jamais aplaudia uma boa ação, porque era fria em relação ao ser humano a quem não avaliava ou dava muito crédito por não vislumbrar nenhuma possibilidade de vê-lo mudar para melhor. Ao que parecia, uma verdadeira cética da vida e dos sentimentos. Não dava notoriedade a este ou aquele. De temperamento misterioso, mostrava-se solitária e quieta. Sua existência – uma incógnita.

Nos últimos seis sábados, impreterivelmente, saía de casa com a filha, Avanez, e o fiel cachorro para irem até a Igreja local fazer uma visita ao padre, aliás, para meramente cuidar de sua erisipela, o que o mantinha sofrendo dores lancinantes havia tempos. Medeia era uma espécie de curandeira local, haja vista sua habilidade em fazer chás e pastas com ervas as quais levavam os moradores do vilarejo a melhoras a médio e curto prazo, de acordo com a gravidade do problema.

- Senhora Medeia, perguntou-lhe o padre numa de suas visitas, porque não vem à missa aos domingos, como todos fazem? Não entendo essa sua indulgência em não vir orar conosco...

- Padre, não me peça nada, assim como não lhe pergunto sobre suas obras. Faço-lhe essas visitas porque nada me custa ajudar alguém. Mesmo que esse alguém seja um... religioso como o senhor. Não acredito no seu Deus. Quero só paz. Mais nada!

- Tudo bem, minha filha, tudo bem! - calou-se o pároco, pensativo. Aquela mulher...

Nada se sabia de seu passado. Chegara à cidadezinha, ou melhor, ao vilarejo de Elmos havia três anos. Veio com a filha nos braços, mais ou menos 3 meses de idade, e o cachorro seguindo-as. Esfarrapadas, secas de tão magras. Já naquela época mostrou-se uma mulher calada, sofrida, com alguma mágoa a serrar-lhe os olhos de um âmbar magnífico, apesar da aparência pálida e séria. Três anos dos quais nunca viam aquela mulher sorrir, conversar com ninguém que não fosse a velha mendiga que teimava em acampar pelos entornos da vila. Uma incógnita. Mesmo assim, não se sabia como, ficava sabendo deste ou daquele que estava doente. Sem ser chamada, com poucas palavras e coerente quanto ao que fazia, salvara a vida de uma criança de seis anos, já nos primeiros meses de estadia no local. O menino, em febre convulsiva, escarrando sangue e com nódulos estranhos pescoço afora, foi cuidado por ela durante sete longos dias – nos quais ninguém acreditara naquela estranha mulher ou em como conseguira convencer os Domenis a cuidar do único filho que morria aos poucos de um mal que o acometia há dois anos mais ou menos. O fato é que o garoto não só melhorou como ganhou nova vida. Agora brincava, sorria, era criança de novo. Depois desse dia, bastava espalhar-se o boato de alguém adoentado e lá estava Medeia, em companhia da filha e seu fiel cão de guarda, aliás, o cão mais medonho que havia por ali: uma aparência cada vez mais grotesca, desde que engordara após sua chegada faminta e esmilinguida naquele povoado. Mas de uma fidelidade e calma que impressionava os moradores. Agora, não mais o temiam, tinham apenas uma certa reserva quando passava com a dona, mas aprenderam a respeitar aquele trio estranho e quieto que raramente aparecia por ali.

Medeia tornou-se uma espécie de médica local. Era um sopro de esperança para um povo que nada ou pouco possuía em bens materiais. A mulher nada cobrava, nada aceitava em troca de seus atos de bondade para com os outros. Mas também, era de pouquíssimas palavras, mesmo ao se despedir.

Certa vez, um viúvo, morador de Elmos, havia trinta anos, tentou se acercar daquela mulher de porte mediano, corpo esbelto e seios firmes. Medeia atraiu-o a partir do momento em que passou a sua frente. Aqueles cabelos loiros e enrolados, balançando até a cintura, moldavam um rosto comum, mas forte e imponente. Era uma rainha – disfarçada em plebeia, a deixar todos ali fascinados e temerosos em tocá-la, tão firmes eram suas atitudes em não permitir a aproximação de ninguém. Foi um átimo de paixão que o fez acordar daqueles dias sombrios. Não se importava se ela carregava aquela menininha loirinha e sardenta nos pés, aonde quer que fosse. Não tinha pai – isso ele notara de imediato. Viúva ou não, ela o interessava, e muito. Não se importava que a chamassem de bruxa. Ele a queria. E sempre, e tanto que lhe ardiam as entranhas só pensar em tê-la aquecendo-o naquelas noites frias e solitárias. Quando tentara maior contato, Medeia foi firme e fria, como sempre, dizendo-lhe para olhar para o lado e observar que Annela, a vizinha, amava-o de verdade. Eram visíveis as tentativas dela em ser notada mesmo sendo uma mulher tão pequena em tamanho, mas com uma enorme dignidade e paixão por ele. Saiu de cena, novamente, mostrando não pretender um pai para a filha ou um amante para aquecer-lhe a cama. Não precisava de ajuda. Apenas oferecia. E assim foram se acostumando com aquele jeito de viver daquela mulher estranha e bela e sua filha calada e séria, acompanhadas daquele cão grotesco, porém tranquilo.

Num certo entardecer, folhas secas caíam das árvores e um vento insano atravessava o vilarejo quando uma imagem surreal apareceu por entre o tumultuoso turbilhão da natureza. Era um homem, isso não deixava dúvida alguma. Forte, muito forte. Maior que todos os que por ali moravam. A altura, imensa. Talvez dois metros. Assustador. Procurava por algo. Olhava em torno com desdém e apreensão ao mesmo tempo. Falava pouco, mas pediu uma caneca de cerveja na taverna local e saiu. Deixou a todos amedrontados, mas se foi em direção oeste. Pobres dos moradores de lá. Havia a família dos Tepérius: o casal, dez filhos e uma velha histérica e doente; havia ainda os Turísius – velhos e cansados de tanto roçar, plantar e colher; o bêbado Tuíni e, ainda, Medeia, Avanez e o cão. Todos eles, aparentemente, vítimas em potencial daquele estranho homem que deixara marcas com o negro forte dos olhos enormes sob aquele chapéu amassado. Não foi visto mais naquele dia. Nem Medeia, ou a filha e o cão. Nunca mais. Foram anos sem notícia se estavam mortas ou vivas. Tudo depois daquela estranha aparição por ali. Havia muitas suposições: ele era o pai da criança que os levara de volta pra casa, depois de uma suposta fuga não se sabe por que. Era um assassino, que matou a todos para roubar comida ou algo que Medeia guardava em segredo e que a fizera tão talentosa na arte do curandeirismo, ou isso, ou aquilo... A única notícia que surgiu alguns anos depois era a de que uma menina-moça sardenta e calada, com aparentemente treze anos, órfã de pai e mãe, retornara à casa da família, muito rica e poderosa, após ser salva de um genocídio hediondo ocorrido na cidade mais importante daquele país. A criança havia sido levada e cuidada por uma estranha mulher, amiga da mãe, reencontrada anos depois e levada de volta pelo chefe da guarda da família que nunca deixou de procurá-la.

Na verdade, Medeia entregou a menina ao tio - homem sério, sem herdeiros e extremamente cuidadoso e preocupado com o futuro da filha de sua irmã mais querida. Depois, ela saiu mundo afora, como uma alma sem rumo, juntamente com seu cão fiel e amedrontador. Faria o que o destino lhe reservou: ajudar com seus poderosos dons aqueles que necessitavam, levando consigo o segredo de seu passado naquele local e o amor oprimido pelo pai daquela menininha - amada por ela como uma filha e cuidada por ela com o capricho de uma mãe carinhosa e presente - que nunca teve, e nunca poderia ser. Quando a mãe da menina morrera no parto, finalmente Medeia pode dar vazão ao amor que sentia por Dreifos desde a infância, o qual era recíproco, mas, que por motivos de estirpe, nunca fora reconhecido ou levado a sério. Tornaram-se, enfim, amantes afoitos até a morte dele, meses depois, vítima de uma emboscada. Medeia, dilacerada pela infelicidade, foi acobertada pela família de Dreifos, que sabia da situação dos dois. Até que a invasão dos inimigos, com o cruel propósito, acometeu a todos e ela fugiu com a garotinha de dois meses nos braços. Salvara Avanez de uma morte iminente. Não dera tempo nem sequer de avisar a ninguém, tamanho perigo. A menina era um elo entre a família dela e a de seu pretendente desde o nascimento. Sua morte cortaria um ciclo que dava certo há décadas. E ela não permitiu.

Finalmente, o que fora previsto há anos seria mantido: a união entre as mais importantes famílias daquele país, de onde sairiam os futuros governantes. E Medeia fora a intermediadora daquilo tudo. Quando levara Avanez, o capataz, seu primo, o grande Brunhoz, era o único em quem confiara para salvar a menina da morte. Ela seria um dos alvos daquela matança, pois os inimigos não queriam que a linhagem dos poderosos Povius fosse adiante. Não seria interessante para os oponentes que governassem mais aquele país. Havia muitos interesses escusos por trás da morte dos descendentes daquele clã. O poder insano suplanta toda e qualquer bondade no coração dos que fomentam o interesse pessoal... Agora a menina seguiria seu destino, já iniciando certa amizade adolescente por Rulles, seu futuro esposo, dotado de belos olhos e aparência de um guerreiro, e por quem já possuía um sentimento diferente e agradável... Mas havia a saudade confusa e longe, dos tempos em que brincava na relva, naquele vilarejo ao longe, em companhia daquele cão e de Medeia, a quem chamava de mãe. Ah! Esses dias ficariam na sua memória de uma forma muito especial. E mal sabia ela que Medeia sofria e sentia o mesmo e esperava um dia, quem sabe, reencontrar aquela que fora, por três anos, a sua única família.

Luzia Avellar
Enviado por Luzia Avellar em 31/10/2012
Código do texto: T3962007
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