O RETRATO DE ESMIRNA

O RETRATO DE ESMIRNA -- Maritza Pérez

(publicado a pedido de minha esposa)

Concerto de Aranjuez

Joaquín Rodrigo

Na saleta dos fundos da casa havia o retrato de uma outra Esmirna – a avó da avó de Esmirna. Era uma saleta pouco usada, quase sempre na penumbra de venezianas. Havia lá uma arca vinda da Espanha e uma cômoda de gavetões cheios de tudo que fora trazido do velho mundo e depois esquecido.

Desde criança, Esmirna costumava refugiar-se ali. Muitas vezes a encontravam sentada no chão, com o olhar fixo no retrato da Esmirna que não viera, que nem sequer sonhara com a América. O rosto contornado pela madeira oval com flores em gesso, assombrava pela nitidez de todas as emoções perpassadas naquela vida agora aprisionada na moldura.

Eu, Erínia, sabia que Esmirna se comunicava com a senhora do retrato. Na verdade, eu ouvia tudo – as perguntas, as respostas intuídas pela sensibilidade exacerbada da pequena e o descortinamento das paixões, dores e quejumbres da dama de além-mar.

Esmirna escolhera uma música para a trisavó – o Concerto de Aranjuez. Levava o toca-discos para a saleta e sentava diante do retrato. Ela sabia que o fulgor daquela mulher, perceptível apenas atrás do negror do olhar, tinha revestido toda a sua carnação e todos os seus gestos.

Através das pinceladas – era um óleo sobre tela – ela conseguia discernir a dolência melancólica dos entardeceres de uma Sevilla que parecia ainda acalentada pelas orações dos muezins – lamúrias cantadas do alto dos minaretes a espalharem-se pelas almenaras, abraçando a cidade em um amplexo de súplica.

A mulher pintada com vestes em tons de sépia, carmesim e brancas cambraias, o rosto levemente acinzentado em torno ao negro dos olhos, movimentava-se lânguida, alheia às orações. Movimentava-se na maré do lamento interminável, mas em louvor ao vinho e à paixão.

A menina sentia o langor dos cantos árabes nos meneios da mulher, a calmaria ameaçadora e a frenética tormenta dos violinos ciganos.

Através do rosto refugiado na moldura, a menina ia reconstituindo uma geografia subjacente, cheia de fervores sucumbidos nos lugares de suas gentes de antanho. A mordaça do tempo não pudera ofuscar daqueles olhos as intensidades de amores e mágoas. Através do olhar da dama, Esmirna passava para um mundo pleno de fascínio...

As praças de touros, arenas de sangue e música; os pasos dobles a marcarem o desfile dos toreadores, a multidão embriagada clamado “olé!” aos gritos, a Esmirna do retrato envolta em uma mantilha de seda negra, com bordados em relevo, em tons de verdes e azuis; o pente majestoso – la peineta – acomodado no alto da cabeça e no colo desnudo uma corrente com orelhas de touros.

O olhar derramava uma altivez inescrutável sobre a arena e focava-se, insistente, sobre a figura esguia de Don Antonio Zurbarán. Nesta tarde de domingo, na ensolarada Sevilla de 1875, a Esmirna do retrato tinha dezesseis anos; era uma mulher magnífica e estava grávida. Ninguém adivinhava pela silhueta estreita, longa e altaneira. Ela recebia as homenagens dos homens como se naturalmente lhe fossem devidas e o sorriso misterioso e vago era uma dádiva...

Sempre fora bela, triste e, na cadência de uma melancolia pungente, descobrira o amor avassalador por Don Antonio Zurbarán, o marido de Martírios, sua irmã mais velha. Era da idade de sua sobrinha – uma menina que ainda brincava com bonecas, enquanto Esmirna se abrasava nos braços do cunhado pelos cantos do casarão.

Não fora fácil conquistar os abraços e o amor do homem que escolhera. Mas ela era irresistível até para aqueles que ela não queria.

Quando Esmirna fugia para dançar nos antros dos ciganos, a noite caía-lhe sobre os ombros como uma renda negra bordada de estrelas. Alçava-se em torno das fogueiras, vestida de chamas, ao som ora enlanguescido, ora atormentado dos violinos, ostentando o colar com as orelhas dos miúras – homenagem dos toreadores.

As palmas ritmadas, as castanholas, as mãos que lhe alcançavam cálices de sangría e o uivo alucinado da matrona que invocava o lamento dos mouros faziam com que o negror dos olhos explodisse como tempestade. Foi em uma noite assim, em que Dón Antonio Zurbarán percorria tablados de flamenco e lugares de alucinações, que ele estagnou diante da mulher que dançava como possuída por demônios. No início, não acreditou ver a cunhada – aquela que tentava seduzi-lo; depois, sucumbiu ao feitiço daquela fome insana.

Antes que Luna nascesse, Esmirna estava casada com Estéban: um homem devoto e benquisto. Sua dedicação à bela mulher com quem casara era o ápice de uma paixão que ardia desde que ela era uma criança e foi com fervor que a levou – ela e a filha – ao altar.

Nos dias santificados, Estéban a arrastava pelas ruas de Sevilla, acompanhando procissões. O olhar da mulher estreitava-se para as bandas macabras que seguiam após os andores de santos famélicos. Andores carregados pelos beatos e seguidos por mulheres envoltas em negros véus, como corvos anunciando o apocalipse, ao som de cânticos e lágrimas de comoção.

Apesar de sua piedosa fé, Dón Estéban, em algum recanto obscuro de sua consciência, sabia que ostentar Esmirna nos dias santificados era uma espécie de profanação. Mas as esmolas que ele dava para a igreja a revestiam de dignidade.

Esmirna continuou fugindo para dançar nos tablados de flamenco e para se exaurir em torno às fogueiras dos ciganos. Era como uma chama exuberante, mas a melancolia já se instalara no olhar cada vez mais mordente. Lenta e imperceptivelmente, estava sendo envolvida por penumbras malsãs e a alegria já lhe pesava como um fardo de pedras.

Quando nasceu Paloma, ela se refugiara em uma abstração plena de memórias e, na ocasião em que Fermín feriu Estéban, quando este tentava arrastá-la para fora de um antro de vinho e música, levando-o a falecer no Hospital de la Sangre, Esmirna esmoreceu. Extinguiu-se o fulgor de sua carnação – permaneceram os olhos, calabouços de tristezas abismais.

Depois de tantos extravasamentos, arroubos e insânias, ela se reconciliara com a solidão. Conquistara a solitude e a guardava como uma pérola, em um dos casulos de sua alma. Toda a tentativa, pois, de se alijar em direção a alguém, de se lançar em propósitos, resultara inútil. Depois dos noivos e amantes, do marido, das filhas, das dissoluções, extinguira-se, absorta em si mesma e naquilo que, através da lente de sua individualidade, a transportava por um túnel para muito além de si mesma – através das sombras silentes de seus antepassados.

Não soubera desselar o mutismo desses lábios mortos, cujas memórias jaziam no cerne de suas próprias células. Entrara para a moldura com votos de silêncio e agora dardejava olhares de súplica àquela menina de seu mesmo nome que sentava no chão de uma saleta – seu túmulo em terras estranhas.

O Concerto de Aranjuez entrava-lhe pelos olhos e a menina, à sua revelia, extirpava-lhe as histórias de suas desistências. Não respeitava a seladura de sua boca, forçava o olhar para dentro de seus olhos e a persuadia a afrouxar o aperto das mãos que seguravam a moldura.

Eu assistia aos encontros, ao som de Aranjuez e, dentro da atmosfera embalsamada em langores, percebia a profunda simpatia da menina pela dama do retrato. Sentia que ela não alcançava a dimensão da ferida mais terrível, velada pelo olhar da mulher de antanho, um dilaceramento de vísceras e sangue, um berro medonho de agonia calado dentro daquele olhar... a morte de Luna — a filha de sua alucinação por Antonio Zurbarán.

Vi quando Esmirna remexia os gavetões e a arca, em busca dos resquícios da trisavó e quando encontrou as folhas corroídas de traças do que seriam os fragmentos de um diário. As perguntas, as insistentes indagações que fazia a todos os da casa sobre a mulher que não viera para a América. Vi, também, o poema “O Retrato de Esmirna”, que escreveu, revelando para nós o que intuíra sobre a dama de Sevilla.

Sobre mim, o olhar da mulher da moldura oval era hostil. Para ela, eu era “a outra”, aquela que a menina ainda não conhecia, a não-nascida que a perscrutava e a devassava com olhos de além — eu era Erínia, a Fúria.

A pozeira de Esmirna

Três páginas de um diário e um fragmento de carta encontrados pela menina em uma caixa, no fundo de um dos gavetões da cômoda. Entre pétalas secas de jasmim e excrementos de ratos, pedaços do diário de Esmirna, em letras que pareciam aranhas e teias pontuadas por mariposas e luciérnagas já apagadas.

Era trêmula a voz de Tio Elifas, ao traduzir as palavras da mulher que passeia seus passos pelos corredores do passado. Eis, pois, as palavras da trisavó:

17 de maio

Não há nada melhor para o meu rosto do que a maciez da pluma de seda. Quando, diante do espelho do toucador, abro a pozeira de porcelana, sinto-me perto de todos eles – o belíssimo olhar de minha avó, os longos cabelos de fogo de minha mãe, as pálpebras translúcidas de Tia Consuelo... O caminhar e a sinuosidade de Tio Izidro... A predisposição para o sonho e a idealidade trágica de Dolores, a que se transpassou com um punhal.

Dentro da pozeira está a visão das primeiras paisagens que os meus olhos não souberam guardar; as renúncias que ainda não fiz; as sombras sutis de minha degeneração. Dentro de minha pozeira existe um espaço enorme, uma extensão mais abrangente de mim mesma do que este mero Dezessete de Maio.

Estou aturdida. Há no ar uma umidade que torna os corpos pegajosos. Muitas vezes passei a pluma no rosto, mas o pó se torna em pasta e já estou com uma espécie de máscara acinzentada. Amparo quis saber como se consegue uma pluma tão leve e delicada, lembrando-me da irritação de Riego, quando ia à cidade, sem jamais acertar o tecido para a pluma ideal. Sim, o tecido demorou a ser encontrado – o retalho de seda chinesa que, afinal, não foi Riego, mas Antonio Zurbarán que trouxe para mim.

Mas o segredo não está apenas na seda, mas também no pó entranhado nela. Ninguém entenderia... nem a leveza da pluma, nem a textura de minha carnação.

Riego diz que sou a mais bela mulher conhecida por ele; Estéban sente que em mim o vinho germina a vibração primordial; apenas Zurbarán sabe da criatura trêmula, esmagada e cheia de glória – “a vampira que suga minha alma”, como costumava lamentar-se.

19 de fevereiro

A casa fechada recende a jasmim. Desde que Luna morreu, os dias e as noites insistem em cheirar a jasmins amassados. Toalhas, tapetes e cortinas guardam a tonalidade oxidada das pétalas. Fenecidas em vasos de porcelana, prata, cristal – os vasos de todos os aposentos, na época dos jasmins, estavam sempre cheios das flores doces e brancas, quando Luna gerava a luz das auroras.

Carmela chegou, abrindo as janelas, libertando a casa dos cheiros persistentes. Limpava gavetas, escaninhos, esconderijos impensados do cheiro morto, profundo e morno. Muito tempo foi até que Carmela retomasse os gestos habituais. Cuida de mim e de Paloma como se ainda fôssemos crianças, qual ama gorda de seios fartos e colo amplo, reclamando sempre do bárbaro costume da família de minha mãe de queimar os mortos, guardando as cinzas em urnas.

Tenho medo ao pensar na minha tez recoberta de sombras, tenho medo da máscara de dores herdadas, feita de sementes de sonhos nunca desabrochados... E de que me valem Paloma ou as cinzas de Luna, minhas filhas? Quem empoará o rosto com as minhas próprias cinzas?

27 de julho

A romãzeira vergou de tantos frutos. O ar está impregnado de aromas insidiosos. Sento-me no banco sob os galhos e, no mormaço, me consagro à fertilidade. Os lábios das romãs já se abriram e, pelas fendas, vislumbro os grãos de rubi que se abrigam e se mostram nos úteros prenhes.

Abraço o tronco, os galhos ásperos; transmuto-me. Entro na terra, insiro-me pelas raízes, vicejo pelas hastes e folhas, floresço. Meu cérebro se torna em frutos de lábios abertos; pensamentos, memórias, as outras de mim mesma são as túrgidas sementes espiando pela fenda da romã.

Sou múltipla em mim, jamais conseguirei abarcar-me por inteira. São tantos os grãos quantas diversidades de mim. Desconheço-me, procuro-me. Forço-me em maturações, escancaro a fresta de minha consciência e me semeio sobre a terra e a relva, em grãos de rubi e de sangue.

Tinjo-me das memórias de todas as outras de mim e das dos meus antepassados, cujos lábios sugaram o sumo dos grãos desta árvore do jardim de meus ancestrais.

Quando dei por mim, desfalecida na grama, havia uma fenda na minha cabeça e, por ela, escorriam para a terra amores, remordimientos, as lembranças mais remotas, ódios e as desistências de mim. A cabeça esvaziada, livre da multiplicidade, tornei-me em uma máscara, um retrato confinado a uma moldura.

Minha filha comera os sete grãos de romã e o inverno se estabelecera para sempre.

Fragmento de uma Carta

As páginas do diário ardem na lareira. Essas cinzas e quaisquer outras não guardarei... há muito, a pozeira de Esmirna, minha mãe, foi esvaziada.

Não sei das lembranças que vocês têm dela, mas as minhas guardarei como enigmas indecifráveis. Talvez, algum dia, possa entendê-las e quem sabe completar o quebra-cabeças de mim mesma.

Por enquanto, é um tempo chamado presente, envolto em panos de mágoas e já os filhos de minha filha descerram as frestas dos amanheceres em que eu, Paloma, não serei.

Em breve, pretendo...

Em uma noite de inverno, quando todos se aconchegavam ao fogo da lareira, Esmirna dirigiu-se à vitrola e fez com que as notas do Concerto de Aranjuez enchessem o aposento. Sentou-se nas almofadas, entre os gatos, e anunciou que leria o poema que havia escrito para a trisavó do retrato. Até hoje, não sei qual das duas Esmirnas terá escrito o poema a seguir. Ou seriam elas uma só?

O Retrato de Esmirna

Em noites de vento e geada,

os netos enrodilhados

em xales, labaredas e gatos

pediam sempre e sempre

a história da mulher do retrato.

A dos olhos de veludo e aço,

a das mãos longuíssimas

que seguravam a moldura

– o oval do próprio retrato.

O relevo dos dedos hirtos

que as chamas não mais,

nunca mais aqueceriam

e o fosco luzir da pérola,

no anel de mortos noivados.

Por que, minha avó, por que

o retrato não engoliu as mãos?

Os gatos arqueavam o dorso

e sôfrego silêncio se instalava.

O nome era Esmirna – Esmirna,

contava a mãe de minha avó.

Ela não veio para as Terras Novas,

não singrou mares nem ventos,

permaneceu lá longe, embalsamada

em brumas, brisas e adágios.

Havia folhas de um diário,

dizia o pai de minha avó,

mas a mágoa roeu o papel

e a memória apagou o resto.

E tudo que sobrou foi a história

relato de desalento e vertigem,

pois Esmirna, imersa em branco

de linhos, cambraias e fitas,

com esmero escolheu moldura:

Entrou Esmirna para o retrato;

as mãos para sempre de fora,

em tensa posição postadas,

segurando a moldura oval,

na simetria rígida do olhar.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 28/04/2011
Código do texto: T2936048
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