Sob o olhar atento dos cegos na multidão (ou, vender o peixe)

A que ponto se espera chegar quando se pensa que fez muito?

É assim, disse, a nobre senhora, ao ser indagada a respeito do filho que abandonou a casa e saiu sorrateiro feito o ladrão que abandona a propriedade surrupiada. E concluía, com certa tristeza: às vezes ocorrem coisas inesperadas. Coisas tão inesperadas que, a despeito de qualquer possibilidade de justificava, não encontra amparo na razão. É com as faces em brasa e o coração palpitando que, quase sempre, se tomam atitudes afobadas. Modos de agir por impulso não costumam deixar bons resultados. Não raro acontece de imprimir sensações desastrosas. Esquecemos dos efei que nossas atitudes exercem nas pessoas. É perguntar demais, por uma questão de consideração, se o incômodo que possa causar, não vai afetar, às vezes de modo permanente, a vida ao redor? Será só uma questão de indiferença ou se pensa que às ações não se tem alguma coisa da própria pessoa? É possível imaginar tamanho alheamento?

A tarde avançou. Mãe e filha lamentavam a ausência do parente. A filha, com lágrimas a correr, lembrava quando brincavam ao pé do abacateiro. Riu, a miúdo, um riso de saudade, é verdade, ao lembrar das traquinagens do irmão e dos sustos que a mãe levava. Nesse momento, acrescentou outra saudade. A avó Lira, há quatro anos falecida, imprimiu no coração da neta, característica também notável na mãe, o senso de solidariedade e responsabilidade para com os outros. A neta, desde pequena, tinha por hábito, e sempre valorizado pela mãe e avó, a preocupação de querer ajudar as pessoas da comunidade. Em certa altura da adolescência, chegou -se dizer que a menina iria para um convento. É claro que o projeto não se concretizou. A avó, embora frequentemente ia à Igreja, praticava os votos religiosos, se opôs. Disse que para fazer a obra de Deus, não se precisa de ajuda de igreja. Que fazer o bem e sem olhar a quem, repetia o conhecido ditado popular, era mais que suficiente. Que se fosse a igreja o refúgio dos bons, não haveria tanto clérico denunciado por abuso e outras coisas mais. Sem contar os enganadores, e surrupiões, verdadeiros embusteiros, pastores que brincam com a fé do povo. Para sorte da jovem, se esqueceu a ideia de convento; estava salva.

A ausência do filho fez da mãe uma pessoa triste. Contrastava com a pessoa de outras épocas, sempre sorridente e adepta das festas. Era automático pensar que ela assumiria os preparativos de alguma comemoração, de algum evento onde haveria a possibilidade de festa. De certo modo, ninguém se mobilizava antes dela anunciar que se dedicaria. Era como se as coisas só saíssem se contasse com os dedos dela. Mas não tem sido mais assim. Raramente é vista. É verdade que a perda da mãe afetou um pouco seu humor, porém, o tempo necessário do luto. Tão logo sentiu -se disposta, não tardou, se colocou a seus cuidados os eventos marcados. Todos na cidade comentaram, felizes, essa disposição. Todavia, a decisão do filho em deixar a casa e a cidade, como um larápio fugitivo, a deixou aos pedaços, dizia a filha "a mãe tenta retomar a vida, ela luta pra ser como era antes, coitada".

O dia amanheceu um pouco diferente. Na cozinha, por dias seguidos, nada além do cheiro de café fresco. Não se cozinhava além do mínimo necessário para a sobrevivência. O desfilar de bolos e doces caseiros, frequentes noutros tempos, sumiram; como já se disse, a alegria, outrora a marca da casa, se recolheu, no lugar tristeza e silêncio. Todavia, o dia amanheceu diferente. A matriarca, aos olhos, e em companhia da filha, desceu à cozinha. Vilma, a empregada da casa, desde a mãe adolescente, vibrou ao ver a avidez com que a patroa mexia na dispensa. Novos tempos pareciam bater à porta. Esperar por esse momento, ninguém dizia, mas era o desejo íntimo de cada ser da casa. Até a pequena Laila, velha cachorrinha, pareceu entender as boas novas. Há muito não se via o rabinho serelepe de alegria. E também o velho papagaio, mudo, desde o silêncio da matriarca, se pôs a tagarelar como nunca antes visto. Bons ventos anunciavam mudanças. Tanto quanto os evangelistas portadores das boas novas, igualmente, aquela manhã tinha essa áurea.

É verdade que a ausência do filho ainda trazia certa melancolia. Superar tão marcante acontecimento, a considerar o modus como se deu, saindo, à noite, às escuras, feito um bandido, não se nega, nem se esquece. A mãe não esquecera o ocorrido, porém, como a Fênix, se refez e deu novos sentidos ao que viria.

O que você espera, que vá ao encontro do carrasco, como um cordeiro, cheio de culpa!? Ora, ora, não julgue com base na sua régua, meu caro. Se saí do jeito que saí, não há nada que possa mudar! Saí, e pronto! Qual o veredito, qual a condenação, a pena? Estarei sentenciado ao exílio, ao desterro, como se fazia na Grécia antiga, ou, serei eternamente condenado à humilhação como um leproso que todos evitam? Nota que não saí da cidade anunciando aos quatro cantos quem era o responsável. Optar pelo silêncio, acredite, foi necessário. Pensou o que aconteceria se soubessem as razões, as verdadeiras razões da minha saída? Não saí, como dizem, feito um ladrão, um fugitivo. É exagero dizer isso. Compreendo quem diz sem saber as razões. É verdade que isso pode parecer verossímil a quem não conhece os fatos. Porém, àquele que ouve, e reproduz, o que lhe chega sem critério, sem balanço, entendo que possa pensar do jeito que o peixe foi vendido. Passa pra frente do jeito que recebeu e o mal cheiro sobe e ninguém pode impedir. Mas, não quis tonar público o que se passou. Pra quê, me pergunto, pra quê mexer em casa de marimbondo? Deixar a cargo do tempo foi o melhor que pensei. Acostumei pensar que o tempo é o melhor antibiótico, cura melhor as cicatrizes. Minha mãe? Por que tocar nisso? Pra que trazer minha mãe pra conversa? Sim, eu sei que sofreu com minha fuga. Penso que sofreria mais se eu tivesse ficado. Verdades teriam que ser ditas. Muitos castelos se desmancham ao primeiro contato com a potente munição que é a verdade. Convicções inabaláveis virariam pó ao primeiro argumento contrário. Não, não foi o medo que me deu a fuga, foi a certeza que somente o tempo detém o monopólio da verdade. Com o tempo não se negocia. A implacavibilidade do tempo fere mais que espada afiada.

Mamãe, mamãe, vem ver. Nasceu outro coelho. Não são lindos? Sabe que na casa da velha matriona, sim, a velha centenária, ela mesma, mãe do antigo administrador, a velha matriona disse que fará uma festa pra comemorar seus 101 anos!? É muito tempo, não acha, viver 101 anos!

São lindos, não são? Os coelhinhos são lindos. Ontem deu saudade da avó e da Laila. A senhora acha que vou viver 101 anos, igualzinho a velha matriona?

Deitada no sofá, a mãe nada respondeu. Dormiu sem acordar, sem ver o filho, que nunca voltou.

__A idade adulta é o "marco zero" na luta pela autonomia relacional. É o momento de a gente saber andar com mossas pernas.

__ O que disse, menina?

__ Nada não, Vilma. Pensei no dia que mamãe disse isso. Não entendia. Agora, acho que entendo.

__ Entende, minha filha, entende.