O Herói Desvirtuado

Na guerra não há vencedores individuais, até porque todos estão lá para viver ou morrer. Mais para morrer do que para viver. E mesmo se continuar vivo, quem foi que disse que você venceu?

O cenário é aterrador. Bombas caindo dos céus. Zunidos de tiros para lá. Zunidos para cá. Dá pra sentir a força do vento da bala passando perto de sua cabeça. É um sopro, a nossa vida. Foi inevitável que esse pensamento viesse na mente de Nikolai. Um soldado russo perdido no meio da guerra contra a Ucrania. A morte passou ao lado dele no meio de sua jornada várias vezes. Brigando com ela. Debatendo, tentando convencê-la a buscar outro. Não ele. Ele tinha uma família. Esposa e filhos. Tinha que continuar vivo para sustentá-la.

Os seus passos pela lama iam lentamente como todos os seus colegas russos invadindo território alheio. Ele sabia que o mundo estaria contra eles depois da guerra. Um país como a Rússia invadindo um território vizinho não é sempre que acontece na história da humanidade. Ele usava esse argumento para tentar não estar lá. Mas estava. E era real. Não adiantava palavras ou justificativas. Ele tinha que estar ali. E tinha que permanecer vivo. Pensava. Prosseguiu o caminho entre as lamas e as balas. Que vinham de qualquer lugar.

Os seus líderes achavam que essa batalha acabaria a qualquer momento, porém já estavam nessa tentativa de conquistar há um ano. E nada garantia a vitória. Todas as vezes que chegava a época de chuvas naquela região, as batalhas ficavam travadas. Os líderes, entretanto, não se importavam com isso, nem com as baixas. Era preciso avançar.

E em meio do batalhão em que fazia parte começou com trinta homens pelo menos. Porém, alguns meses depois estavam em 12. Ele conhecia a história de cada um. Conviveu tempos tenebrosos ao lado deles o suficiente para saber de toda a vida de cada um de seus colegas. Quando um morria, vinha o desespero de pensar que poderia ser ele, mas ele tinha que avançar, seguir em frente.

Balas passavam perto de seu corpo. E por mais escuro que estivesse o momento, ele sabia disso. Estava certo, que a qualquer momento qualquer colega seria atingido e seria um a menos para acompanhá-lo. Com a sua metralhadora semiautomática em mãos, foi seguindo passando por paisagens devastadas por explosões. Pontes que estão pela metade por causa da destruição. Corpos carbonizados ora de russos, ora de ucranianos. Todos eram um nesse momento. E em um tiroteio, lá se foram 3 de seus companheiros. sobrando 9. Era ele e mais oito.

Atravessaram juntos um lago, tinham que caminhar agachados. Por vezes, raspava em suas pernas e pensavam que eram peixes. Quando pegavam com as mãos achando que iam tirar um alimento nutritivo da água, eram partes de corpo, armas perdidas. O que o deixavam desnorteados. Perdendo as esperanças. E enquanto estavam passando o lago cheio de manchas vermelhas, ouvem-se disparos de metralhadoras e canhões e recomeçava tudo de novo, procuram cada um a seu canto um lugar para se esconder. Mas esconder-se como? No meio dos tiros cruzados. As balas vinham de todos os lados. Restavam fechar os olhos e crerem que uma hora ou outra acabaria. Quando Nikolai abriu os olhos, foram 4 em uma noite. Sobraram ele e mais 3. A certeza de sua morte estava chegando.

Eles foram avançando rumo à Kiev, a cidade alvo. entraram em uma cidade fantasma. Pareciam ouvir gritos de soldados mortos. Seriam fantasmas? Ou civis pedindo socorro? Seriam russos? Ou ucranianos? Não sabiam. Só sabiam que tinham que avançar. Crendo que lá na frente se deparariam com a morte, ou com outra tropa russa e voltariam a ter um número considerável de colegas. Essa batalha está certa? Vinha em sua mente a sua família. E não sabia exatamente o que estava fazendo ali. Só sabia que tinham que avançar. E alcançar a cidade alvo: Kiev? E se chegassem lá, os 4? O que fariam em seguida? Encontrariam alguém? Não sabiam o que fazer, pois os líderes deles tinham sido mortos. Restavam a fé de que alguém o socorreriam. Nikolai estava obstinado a continuar vivo. E só. Sua esposa estaria pensando nele agora?

Chegaram a uma rodovia. E resolveram seguir a rodovia. Seria uma boa ideia? Ele pensou que seria óbvio demais, que teriam ucranianos esperando-os para os pegarem de surpresa. E estava certo, tinha mesmo ucranianos. Ele pensou no seu inimigo. É inimigo mesmo? Estaria ele lutando contra o inimigo? E se houvesse outro Nikolai do outro lado? Esses pensamentos vieram à sua cabeça pela primeira vez. Tinha parentes ucranianos também. Mas estava obstinado a atacar os ucranianos. E mataria todos. Só para permanecer vivo. Para sua família. Pensou. Parou no meio da rodovia. Se entricheirou atrás de um posto de gasolina que estava abandonado por causa da guerra. Os outros pararam também e começaram a se alimentar com as sobras que tinha na loja de conveniência do posto.

Entretanto, tiros foram disparados contra eles. E quando Nikolai menos se deu conta, ele estava só. Malditos Ucranianos. Os tiros cessaram. E ele correu pra fora da loja e do posto e da rodovia. Malditos. E correu como nunca antes, em direção à Kiev. Se visse o inimigo no caminho atirava, e vencia. E foi conquistando o espaço. Estava no meio de um bosque desta vez. Entre as árvores ele poderia se proteger. Estaria o ucraniano e ele em pé de igualdade. Pensava ele. E foi de árvore em árvore se esquivando de qualquer pensamento de morte, convicto de que está do lado certo. E foi correndo, avançando rumo ao exército inimigo. Estavam lá todos atrás das trincheiras. E ele parou de correr e esquivou indo para um canto da floresta. Nas sombras para ninguém vê-lo. Ele via todo o exército ucraniano em sua base. Era a chance dele.

Ia se aproximando do inimigo. Viu um soldado ucraniano sozinho. Passando por ele, mas ele estava bem escondido. Era a vantagem que ele precisava para se vingar. E matar aquele soldado. Aos poucos como um leão que vai aproximando devagar até chegar o derradeiro bote. Ele podia ver o inimigo, mas o inimigo não fazia ideia de sua presença. O inimigo entrou em uma casa, sozinho, que estava abandonada pelos donos. Talvez para ir ao banheiro. Era uma casa no meio do bosque. Que perigo. O inimigo estava caindo em uma arapuca, em uma armadilha. Igual os colegas de Nikolai, que foram morrendo um por um, de armadilha em armadilha. Nikolai era o predador desta vez, ele tinha a vantagem. Era só chegar e atirar. Entrou na casa. Tinha retratos de família. Ele se lembrou de seus parentes. Prometeu se vingar, assassinando aquele ucraniano maldito. O Ucraniano esta no corredor, provavelmente, procurando o banheiro daquela casa. Nikolai foi se aproximando.

Vagarosamente. Quando se aproximou próximo o bastante, sentindo o bafo do seu inimigo. Sentindo até os pensamentos dele, de tão próximo, Nikolai chamou pelo inimigo, quando o inimigo se virou assustado e atônito, Nikolai foi surpreendido. Seu inimigo era ele mesmo. Era a sua cara, o seu corpo, a sua voz, a sua identidade. E caiu em si.

Eduardo Eide Nagai
Enviado por Eduardo Eide Nagai em 16/01/2024
Reeditado em 16/01/2024
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