Os olhos por trás dos óculos

Me peguei parado dentro do porão da casa onde passei minha infância, segurando uma pequena caixa nas mãos.

Eu estava ali parado, como se tivesse acordado naquele momento. Não me lembrava do que tinha acontecido no caminho do cemitério para casa. Tínhamos voltado do enterro do meu pai.

Essa caixinha retangular que estava segurando tinha um nome escrito, uma logomarca na tampa, mas de tanto ser enfiada no bolso das calças o nome estava ilegível.

Nessa época eu estava com vinte e seis anos e nunca fui uma pessoa de muitas amizades. Depois da morte de meu pai, me afastei mais ainda das pessoas até que resolvi me mudar para uma cidade maior e me afastar de vez de todas as pessoas que conhecia.

Alguns meses depois eu já estava trabalhando e morando em um pequeno apartamento em uma região mais tranqüila dessa grande cidade.

Certo dia ao chegar em casa mais cedo, resolvi arrumar meu armário e para minha surpresa encontrei aquela velha caixinha que encontrei no porão da casa de meus pais. Não me lembrava de tê-la trazido comigo.

Fiquei sentado por alguns minutos olhando aquele objeto de madeira sem abri-lo, imaginando como ele havia sido quando era novo e tentando identificar o nome escrito na pequena tampa.

Resolvi abri-la e quando vi o que estava guardado ali, meus olhos se encheram de lagrimas. Ali estavam guardados os velhos óculos de grau do meu pai. A armação era preta, não muito grossa, mas também não era fininha como as armações modernas. Eu me lembro perfeitamente daqueles óculos no rosto forte do meu pai, ele até parecia outra pessoa quando o colocava nas noites em que saia para visitar um parente nosso que era muito doente e morava sozinho em uma cidade vizinha. Minha mãe e eu ficávamos sozinhos e ele muitas vezes só voltava para casa no outro dia pela manhã.

Por um acaso do destino, justamente nessa noite, eu fui olhar pela janela e não consegui ler uma nova placa de propaganda que foi instalada a alguns metros de distância do meu prédio, exatamente na rua onde todas as noites dessas últimas semanas eu fico observando uma linda mulher que passa por ali sozinha voltando do trabalho (eu acho). Alguma coisa no jeito dela me faz vir para essa janela todas às noites e esperar pelo breve momento em que ela passa.

Um arrepio percorreu meu corpo e involuntariamente olhei para meu lado. A caixa com os óculos de meu pai estava ali, a menos de um metro de distância. Abri a caixinha e coloquei os óculos que para minha surpresa se encaixaram perfeitamente em mim.

Olhei para aquela rua deserta e consegui ler aquela placa como se ela estivesse a dois metros de distância. Tudo estava mais nítido, foi impressionante! Eu me sentia muito bem! Até me sentia como uma nova pessoa.

Um novo mundo se abriu aos meus novos olhos.

Senti uma leve tontura quando olhei para a rua novamente, mas me recuperei logo e olhei para o relógio. Estava quase na hora dela passar.

Respirei fundo e resolvi que iria vê-la de perto. Quem sabe até conhecê-la.

Fui até o espelho e somente agora, me olhando ali, vi como era parecido com meu pai. Eu nunca me achei parecido com ele, mas hoje eu era praticamente ele. Na verdade, eu me sentia como se fosse ele!

Nessa noite meu pai fez sua primeira vitima depois de morrer.

Através de seus óculos, ele me mostrava todos os assassinatos que havia cometido naquelas noites em que dizia visitar o tal parente de outra cidade (que nunca existiu). Agora, através de seus óculos, ele vivia e matava novamente usando o corpo do filho.

Fim.

Igor Martins
Enviado por Igor Martins em 08/06/2017
Código do texto: T6021869
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