AMANHÃ REAL

Na noite fria daquele inverno rigoroso, Castro seguia sua volta para casa depois de 12 horas de trabalho na empresa do senhor Leopoldo. Era uma empresa pequena de carvão. De segunda a sábado, das 8 as 20 horas. O retorno após mais um dia desgastante era sempre igual, cerca de três quilômetros caminhando e escutando música sertaneja com seus fones de ouvido. O caminho era em meio as árvores, na verdade, era um atalho bem conhecido por Castro.

Acostumado a essa rotina, não percebia mais nada a seu redor. Para chegar a sua casa passava por uma pequena ponte feita com pedaços de madeira e troncos de árvore, estranha, mas segura. Ficava acima do rio que cortava a cidade. Ao atravessar, Castro percebeu que ali faltavam algumas madeiras, lembrou que a alguns dias, havia chovido muito e que a água teria passado por cima. Noite normal, caminho natural, até que algo fez seu coração bater mais forte, um sentimento de companhia indesejada. Morava sozinho, sem vizinhos. Não era um problema, não se preocupava com isso, como ele mesmo dizia: “Vida solitária, porém tranquila”. Mas essa sensação estava deixando Castro angustiado e trêmulo. Olhava para os lados e percebia uma movimentação diferente nas árvores. Tirou suas luvas, guardou seus fones de ouvido, apertou o passo, afinal estava a metros de sua casa, olhava firme para frente e finalmente chegou. O silêncio lhe incomodava, onde estariam seus cães?

Peter era um vira-latas, fazia muito barulho e era esperto, Toby sempre o recebia com as tradicionais lambidas. Seguiu em direção a porta e percebeu um cadeado enorme e uma corrente impedindo sua entrada. Virou as costas para a casa, estava confuso, as suas chaves não abriam o cadeado. Chamou seus cães, mas nada, cada vez mais silêncio. Foi até o celeiro, pegou uma barra de ferro, voltou até a porta, forçou a estrutura até quebrar as dobradiças da porta e entrou se deparando com suas coisas cobertas por lençóis empoeirados. Pensou que alguém tivesse invadido sua casa, mas quem? Nesse fim de mundo não aparecia ninguém e também não dava falta de nada.

Pensou ser uma brincadeira de sua irmã que a muito não via, ela se mudara para outra cidade após a morte de seus pais. Ficara traumatizada pelo grave incidente na família. A casa em que eles moravam a cerca de 600 metros da casa de castro, pegou fogo, devido às velas que a mãe usava para iluminar as noites. Castro tentou resgatá-los, mas cada tentativa ele saia com mais queimaduras. Após várias tentativas, com o corpo muito machucado e com dificuldade para respirar ele parou. Percebeu que não havia mais jeito, seus esforços foram em vão, seus pais não resistiram. Daquele episódio em diante Castro vivia completamente sozinho.

Desistiu de ficar em sua casa, aqueles panos empoeirados cheiravam mal, foi descansar no celeiro, aguardando a volta de seus cães ou esperando uma surpresa de sua irmã.

Amanheceu e aquilo tudo era muito confuso, seus cães estavam sumidos e ele não conseguira pegar no sono. Cansado e triste iria retornar suas atividades habituais, colocou seu macacão, uma touca, luvas e casaco de lã, procurou seus fones de ouvido, mas percebeu que com a confusão do dia anterior havia perdido. Estava atrasado, depois procuraria. Caminhou como sempre pelo meio das árvores, chegou na pequena empresa e percebeu haver outro homem sentado em seu lugar, a função de Castro era costurar os sacos de carvão. No momento pensou que o Sr. Leopoldo havia o trocado, foi direto até a sala do chefe, mas ele não estava. Percebeu em cima da mesa uma foto com data de 4 de março de 2016.

— Que brincadeira é essa? Ainda estamos em dezembro.

Achou estar enlouquecendo, pegou o jornal na cadeira, era 3 de julho de 2016, estava aberta na página do obituário e nele havia um convite para missa de seis meses da morte da família Castro.

— Eu não sabia dessa missa!

A missa seria na igreja do centro da cidade, foi correndo para o local. Entrou na porta ofegante e ao olhar para as imagens dos santos no altar, sentiu uma paz interior. Ao lado de uma coroa de flores havia duas grandes fotos, uma era de seus pais sorrindo e abraçados e ao lado, a imagem de castro, alegre em um campo verde com rosas-amarelas, local que adorava passar os finais de tarde e levava sempre uma dessas rosas para sua mãe.

Nesse momento tudo começou a fazer sentido. Seguiu caminhando e nos primeiros passos duas pessoas viraram-se e acenaram, eram seus pais. Uma aura dourada emanava de seus corpos e castro não resistiu e começou a chorar, a saudade era muito grande e o sentimento de culpa por não ter conseguido salvá-los dissipou-se no ar e ele foi abraça-los como nunca havia feito antes.

Após esse momento Castro perguntou:

— O que fazem aqui?

— Nunca lhe abandonamos, estávamos aguardando você.

Castro ouviu a voz de sua mãe, mas ela não mexia os lábios.

— Mas vocês morreram naquele acidente, eu tentei, eu tentei, mas não consegui salvá-los.

— Nós sabemos, já estávamos mortos quando você chegou, não foi sua culpa, não adiantava mais tentar.

— Me perdoa papai, me perdoa mamãe, não consegui suportar as queimaduras e não consegui respirar lá dentro e desisti, por favor me perdoem.

— Você não está entendendo Castrinho? — Falou seu pai, e completou:

— Você foi no seu limite e também ficou preso na casa, morremos juntos.

Mas como podia ser verdade? Até ontem ele morava em sua casa, trabalhava na carvoaria e o incêndio acontecera a seis meses. As imagens começaram a brotar em sua cabeça, lembrou-se do choro de sua irmã ao lado do que restou da casa e de sua família no dia seguinte ao incêndio.

Seu interior acalmou-se, sentiu em suas pernas uma sensação conhecida, eram Toby e Peter, seus cães.

— Mas como pode? Eles me enxergam? — Falou castro.

Com muita suavidade e carinho sua mãe respondeu:

— Eles nunca te abandonaram, te seguiram quando entrou na casa, não saíram do seu lado.

Ele abaixou-se e Toby lambeu seu rosto. Peter latia baixinho, chamando a atenção de seu amigo.

Mais ao fundo da igreja, chegava sua irmã Cláudia, ela estava grávida, seria o seu primeiro sobrinho. Foi em direção, tentou tocá-la, mas suas mãos a atravessaram. Ela parou no meio do caminho e ele sussurrou em seu ouvido um breve “te amo”.

Voltou na direção de seus pais, pegou cada um com uma das mãos, chamou os cães e partiram em direção a luz. Na saída, ao passar ao lado de Cláudia ouviram a voz dela dizendo:

— Também amo muito vocês.