Entre a Vida e o Ódio

*Introdução*

Sem eufemismo, pois já ultrapassei essa fase, sou uma mulher sem filhos, solteirona, tipo matrona, atenta à vida, à espreita, tentando detectar maiores ou menores carentes, sobre os quais eu possa derramar meu afeto, sem receio de rejeição ou de ser mal compreendida...

Me chamo Lavínia, mas desde sempre fui chamada de Bina. Vivendo só e sem vida social, adquiri o hábito de frequentar uma cafeteria que além de servir uma boa torta e bom café, posso apreciar a paisagem e observar os frequentadores.

Num dia destes, conheci Camila, uma bela jovem de vinte e dois anos, mas de aparência doentia, com olheiras grandes e escuras.

Quando nossos olhares se cruzaram, sorri para ela e recebi seu meio sorriso, triste, de volta.

Na próxima semana nos reencontramos e tomei a iniciativa de cumprimentá-la. Sentamos-nos juntas, e a partir daí, nos tornamos amigas.

Um dia ela me contou sua triste história. Primeiro fiquei estarrecida, depois, em casa, fui ficando realmente furiosa e fiz algumas pesquisas na web sobre o assunto. Percebi que minha querida Camila, que nessa altura eu já considerava como uma filha, não era a única e provavelmente, não seria a última a se tornar vítima de um crime tão monstruoso.

Camila me permitiu narrar sua história, como se segue.

I

Camila foi criada e registrada como Olívia, na Espanha, filha única e herdeira de uma família riquíssima do ramo têxtil.

Olívia frequentou o mais caro colégio católico e, até seus doze anos de idade teve sempre a companhia de uma babá consigo. Sua mãe pouca atenção dava às suas necessidades de criança.

Vivia vigiada, sem oportunidade de realizar qualquer ação sem antes obter a permissão de seus pais, Murilo e Inês, rigorosíssimos com a filha.

Olívia sofria de terríveis pesadelos, por isso tinha medo de dormir. Também sentia aversão pelos pais, sempre dando um jeito de escapar da presença deles quando estavam em casa, já que para sua sorte, tinham vida social intensa. Evitava ser tocada por eles e por mais que tentasse, não conseguia amá-los.

Sua menarca se deu aos catorze anos e foi a partir dessa fase que seu mal-estar começou a piorar. Como mal dormia e mal se alimentava, teve que consultar um clínico geral, que, não encontrando uma causa física, indicou-lhe um psiquiatra.

Seus pais foram radicalmente contra consultar um psiquiatra, dizendo que era só uma fase típica da adolecência.

Com pesadelos cada vez mais decorrentes e a aversão pelos pais já no limite do suportável, os dias passavam.

Olívia era nadadora e sempre representava seu colégio nas competições. Certo dia, durante um treino, conheceu uma menina de origem argentina, que também treinava. Tornaram-se amigas e Olívia passou a frequentar a casa de Laura, sua nova amiga, às escondidas.

Como adorava entrar naquela casa, sentir os aromas, saborear suas comidas simples! Em pouco tempo já falava o castelhano com sotaque e usava gírias argentinas.

Seus pais quase tiveram uma síncope quando descobriram suas escapadelas, proibindo-a terminantemente de voltar a encontrar seus amigos, sob a ameaça de internato nalgum colégio distante.

Assim, sufocada, os anos passaram e descobriu chocada, que odiava os seus pais.

Quando completou dezoito anos, foi sozinha consultar-se com um psiquiatra, que, acreditando que seu mal-estar era devido à má qualidade do sono, receitou-lhe soníferos e um calmante leve, sem maiores averiguações.

II

No colégio, Olívia tinha um melhor amigo; Ramon, garoto um ano mais jovem que ela, gorducho e além de estar sempre de bem com a vida, estava também, sempre disposto a ouvir as confissões de Olívia e há muito, conhecia seus dramas.

Talvez por brincadeira, um dia disse-lhe se supetão:

_ Vai ver, você foi adotada, por isso não gosta dos seus pais e tem esses sonhos estranhos.

_ Do jeito que são orgulhosos, duvido que adotassem uma estranha... Retrucou-lhe.

Mesmo assim o assunto foi longe e, animados, como que brincando, foram para a casa de Ramon para pesquisar o assunto na web.

De repente, deram de cara com um site internacional, especializado em crianças desaparecidas. Algumas dessas crianças eram mostradas em fotos.

Quando Olívia viu uma bebezinha segurando seu mordedor de borracha, azul claro, começou a passar mal e quase desmaiou, precisando deitar-se às pressas na cama de Ramon.

_ Olívia, o quê aconteceu? O quê você tem? Ai, Meu Deus, acho que vou telefonar ao papai... Disse, já em pânico.

_ Espera, foi só um susto... Já vou melhorar. Garantiu-lhe.

_ Ramon, eu tenho um mordedor de borracha igualzinho ao daquela foto. Olha bem a mãozinha e você verá uma pinta preta na lateral do pulso direito... Pediu-lhe, Olívia.

_ Estou vendo, claro! E daí? Perguntou.

_ Agora, olha o meu pulso direito. Vê quase que a mesma pinta?

Ramon, acho que agora eu vou enlouquecer de vez, mesmo! Falou assustada.

A bebê, de nome Camila, era nascida na Argentina e havia sido sequestrada aos quatro meses de idade. Enquanto seus pais vinicultores trabalhavam, ela costumava ficar em seu carrinho sempre próxima deles. Mesmo assim, desapareceu num piscar de olhos.

_ Ramon, vou procurar meu velho mordedor que com certeza ainda está guardado em alguma caixa no sótão. Vou guardá-lo muito bem e quero que você me jure que por enquanto, não dirá nem uma palavra sobre esse assunto. À ninguém, entendeu? Falou-lhe séria, e ele jurou que assim seria.

Já de posse do seu mordedor azul e após refletir muito, Olívia chegou a conclusão de que ela era, de fato, a Camila.

Olívia nunca chorou tanto quanto naqueles dias e pediu para Ramon levá-la até o pai dele para consultá-lo. Ramon vivia se gabando de ser filho do policial mais condecorado de Granada.

Quando chegaram, à hora em que com certeza Santiago, pai de Ramon estaria em casa, Olívia, nervosa, já começou a chorar.

_ O quê foi que você me aprontou? Perguntou severo, ao filho, ao ver a aparência lamentável de Olívia.

Após acalmar o pai dando as devidas explicações, Santiago fez Olívia repetir a mesma história várias vezes, como num interrogatório policial.

_ Você é uma herdeira rica e seus pais são poderosos.... Isso é um vespeiro. Como policial, estou acostumado a lidar com tudo, mas, você aguentará? Veja bem, depois que começarmos a mexer nisso, não haverá mais volta. Disse-lhe Santiago.

_ Minha vida já é um inferno, vá em frente, por favor! Olívia pediu.

_ Será uma operação extremamente sigilosa, vou colher algumas amostras de Olívia para exame de DNA e vocês continuarão com suas vidas normais sem tocar nesse assunto, até que eu dê notícias, entenderam? Santiago perguntou-lhes e ambos acenaram concordando.

Agora, apesar de ainda tomar soníferos e calmantes, Olívia já estava dormindo bem melhor do que antes.

Passados dois meses, após a conversa com Santiago, já era quase madrugada quando carros da polícia tomaram a rua calma onde ficava a mansão de Olívia. Os policiais batendo à porta, apresentaram um mandado de busca e ordens de prisão para Murilo e Inês, sob a acusação de sequestro.

Fora comprovado que Olívia era de fato, a bebê Camila sequestrada na Argentina. Na época de seu sequestro, havia uma quadrilha internacional especializada neste tipo de crime, atuando na Europa e nas Américas.

Durante o interrogatório, Murilo e Inês confessaram que havia encomendado e comprado por uma grande soma, uma bebê de origem latina, pois não podiam ter filhos mas precisavam de um herdeiro.

III

Assim que pôde, Camila voou para a Argentina, para procurar seus parentes. Infelizmente, seus pais já eram falecidos e ela não tivera irmãos. Restou-lhe a avó materna, Mercedes, já com mais de oitenta anos e morando sozinha.

Camila adorou a avó assim que a viu, e abraçando-a, sentiu um perfume que lhe pareceu tão familiar!

A avó chorou muito relatando o que se passara após o rapto. Sua filha Amelita, mãe de Camila, havia sido advertida pelos médicos para não engravidar mais, pois os riscos eram altos.

Mas Amelita, não suportando a perda de Camila, resolveu arriscar e infelizmente, tanto ela quanto a criança vieram a falecer durante a necessidade do parto prematuro aos sete meses de gestação.

Seu pai, Juan Carlos, entregando-se totalmente à bebida, faleceu ainda jovem, mas devastado pela cirrose devido ao abuso alcoólico.

Tendo uma boa formação, Camila logo começou a lecionar e em pouco tempo, foi convidada a lecionar num colégio de alto nível no Brasil.

Camila aceitou e mudou-se, trazendo consigo a vovó e a esperança de uma nova vida.

Porém, por mais que tentasse, Camila não esquecia as mágoas e seu coração foi se enchendo cada vez mais de ódio.

Sem outra opção, frequentava mensalmente um psiquiatra e vivia à base de calmantes.

E foi aí que nos conhecemos. Conheci também a adorável Dona Mercedes, que logo tratei como vovó, com muito afeto. Camila, também, carente de afeto materno, se comportava como se fosse minha filha; dengosa e afetuosa.

Eu desejava que Camila tivesse uma vida mais plena, livre de remédios, por isso falei-lhe a respeito de um monge budista que me ajudara no passado, e disse que gostaria de levá-la até ele. Camila concordou e fomos.

O monge vivia meditando e já estava bem velhinho, porém, com uma lucidez impressionante.

Após apresentar-lhe Camila, coloquei-me à distância, na penumbra, enquanto eles , sentados no tatami, conversavam.

Ele: Você perdeu já perdeu muitos anos importantes da sua vida. Quer perder o resto? Acho que não! Então, pare de odiar.

Ela: Não consigo! Me tiraram tudo, vivi servindo um casal de loucos como uma escrava, sem direitos ou liberdade... Sinto raiva, sinto muito ódio!

Ele: Vê aquele saco cheio ali? Ele aguenta qualquer pancada. Vá até ele e esmurre-o com força, quantas vezes quiser, até esvaziar a raiva.

Arregaçando as mangas, Camila foi e deu o murro mais forte que pôde, quase caindo para trás, gemendo e massageando a mão dolorida.

Ele: Percebe? Quanto mais força você põe no ódio, maior se torna a sua dor! Isso só tem fim se você parar o ódio; o que pode ser feito agora mesmo se quiser.

Chorando, Camila encolheu-se em posição fetal, soluçando alto. Tive que me segurar para não correr até ela.

Gentilmente, o monge colocou uma almofada sob a cabeça dela e também cobriu-lhe o corpo com um manto, deixando que chorasse até se cansar. Passados alguns momentos;

Ele: Você vai entender, que todos nós, seres humanos, sentimos dor. Dores de todos os tipos e dos piores tipos, sem excessão! Mas nem todos odeiam... Odiar é uma opção pessoal, deixar de odiar, também.

Vou dar-lhe dois saquinhos contendo ervas para fazer chá.

As ervas de cor clara são para o chá do Amor, que você poderá tomar durante o dia.

As ervas de cor escura são para o chá da Paz, que você poderá tomar antes de dormir. São ótimos, mas só serão eficazes caso você desista de odiar.

E não se preocupe, pois, quando acabarem, é sinal de que você não precisa mais deles.

Levantando-se, Camila abraçou o monge agradecendo por sua ajuda.

Veio até mim, me abraçou e beijou e juntas, nos despedimos do velho monge, saindo.

Com os olhos brilhando e as faces coradas, Camila disse:

_ Bina, estou me sentindo tão diferente, com vontade de viver, de fazer tantas coisas... Acho que estou curada!

Não vejo a hora de contar tudo para a vovó!

Como Deus é bom! Me tiraram quase tudo, mas Ele me deixou a vovó e ainda me deu a melhor mãe do mundo. Falou, me abraçando.

Tentando conter as lágrimas que teimavam em me cair dos olhos, eu mal conseguia disfarçar o orgulho por ser "mãe".

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Allba Ayko
Enviado por Allba Ayko em 17/05/2015
Código do texto: T5244472
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