A carona

Estava eu no meu carrinho quando fui ultrapassada por um carro em alta velocidade. Um carro preto tipo, vamos dizer, um Station Wagon.

Continuei o meu trajeto, muita chateada por ter sido ultrapassada onde era proibido a ultrapassagem.

Alguns quilômetros mais à frente, estava o Wagon parado no acostamento.

O motorista do lado de fora, limpava a testa e de mangas arregaçadas observava algo no motor do veículo.

Indecisa se deveria ajudá-lo parei em frente. Cumprimentei e perguntei se precisava de ajuda, disse sim. Ele me pediu emprestado o celular para ligar à seguradora. Emprestei o aparelho e me afastei para deixá-lo à vontade.

Estava muito quente, abafado, parecia chover a qualquer momento e eu não gostaria de esperar pela chuva.

Sugeri ao rapaz deixar o carro no acostamento e buscar abrigo no posto de combustível mais próximo.

Ele aceitou a sugestão, mas disse que precisava levar consigo o maleiro que trazia sobre o teto de seu carro. Concordei prontamente, todavia o maleiro parecia muito pesado para ser retirado de cima do veículo, tentei ajudá-lo, mas realmente era bastante pesado. Surgiu um senhor de bicicleta e decidimos pedir sua ajuda, para retirá-lo e, em seguida, colocá-lo sobre o meu próprio carro. Assim fizemos.

Tão logo pegamos a estrada, caiu um temporal com granizo e um vento muito forte.

Tive a sensação de que o maleiro cairia do teto e comentei com a minha carona que se mostrou preocupado se tal incidente realmente pudesse acontecer.

Reduzi a marcha, entrei com cautelas nas curvas, pois não gostaria que aquela coisa caísse na estrada.

A visibilidade era péssima, difícil enxergar com a névoa que se formava no vidro.

Felizmente chegamos a um posto de combustível quando a tempestade também chegou ao fim e um lindo arco-íris se formou no céu.

Aproveitei para tomar um café e fumar um cigarro enquanto meu acompanhante usava o telefone público, instalado próximo à porta da lojinha de conveniência anexada ao posto.

O rapaz, finalizada a ligação veio me dizer que o socorro a seu carro poderia demorar e ele não podia esperar, pois deveria fazer a entrega do maleiro na hora e datas combinadas com o destinatário.

Arriscou-se, com certa relutância, a me pedir ajuda, para levá-lo ao seu destino, o que, certamente, atrasaria a minha própria chegada.

Eu estava sendo esperada para proferir uma palestra na universidade.

Ele propôs que o levasse, justificando que a distância era curta e, por coincidência, o local onde deveria fazer a entrega, ficava a meio caminho da minha cidade.

O rapaz demonstrava estar apreensivo, me pareceu ansioso e preocupado. Lamentou o incidente com o carro, dizendo que sua responsabilidade sobre o conteúdo do maleiro era enorme.

Fiquei penalizada pelo rapaz, concordando em levá-lo com sua bagagem. Ele se propôs a completar o tanque de gasolina do meu carro, em troca da minha gentileza.

Tenho um coração mole.

Pegamos novamente a estrada, eu fiquei com a mesma sensação de que o maleiro despencaria do teto a qualquer momento.

Dirigia devagar, evitava os buracos grandes e pequenos, apesar da suspensão do carro oferecer segurança, por não sacolejar mesmo em péssimas estradas, mal conservadas.

Minha carona consultava o relógio do painel constantemente, ou melhor, não, tirava os olhos do painel. Estava apreensivo. Reparei que não portava um relógio de pulso, talvez como eu, acostumada a consultar o relógio do telefone celular.

Após ser ultrapassada por inúmeros veículos, inclusive caminhões e um ônibus - fui xingada por um caminhoneiro, chamou-me ‘tartaruga roda presa’ - atingimos um ponto com tráfego lento.

Uma ambulância nos ultrapassa pelo acostamento e a carona - ainda nem perguntei seu nome - exclama com as mãos na cabeça que só faltava um acidente para atrasar a viagem.

De fato, surgiram alguns policiais para impor disciplina. Alguns apressadinhos invadiram o acostamento afunilando a via mais a frente.

O tráfego começou a fluir e nos deparamos com um caminhão tombado com sua carga de bananas esparramada no asfalto. Felizmente um acidente sem vítimas.

O motorista acidentado, por incrível que possa parecer, foi o tal que me xingou de tartaruga. Pensei em zoar com a cara dele, mas o susto que deveria ter tomado foi suficiente para me fazer desistir da ideia.

Prosseguimos na estrada quando me ocorreu perguntar o nome do rapaz, ao mesmo tempo pensei que ele também deveria ter-se apresentado a mim.

Creio que ele deve ter pensado o mesmo, pois pedindo desculpas disse se chamar Otávio e perguntou meu nome. Respondi que chamava Tati, na verdade o meu apelido.

Depois de um longo viaduto em curva, nos deparamos com uma blitz.

Um policial me fez estacionar e pediu documentos ‘por favor senhorita’.

Adorei a delicadeza do moço policial rodoviário de uns olhos negros luminosos, um sorriso lindo e um uniforme impecável.

Otavio tomou a iniciativa de apresentar seus documentos também, porém percebi certo tremor em suas mãos. ‘Documentos em ordem, posso vistoriar o carro’, perguntou o policial. Saímos do veículo e deixamos o guarda fazer a vistoria.

Acendi um cigarro, eu ofereci outro a Otávio, que recusou dizendo não fumar.

Outro policial se apresentou perguntando de onde viemos e para onde iríamos.

Otávio contou o problema com seu carro, aguardando o guincho, pegou uma carona comigo.

O policial dos olhos negros se aproximou e perguntou o que havia no maleiro, Otavio respondeu desconhecer o conteúdo pois lhe coube apenas leva-lo.

O outro, por dever do ofício, pediu que o abríssemos. Para nossa surpresa, incluído Otávio - se mentiu ou não fica a dúvida - a caixa continha várias partes de um esqueleto humano. Restou aos policiais apreender o carro e nos levar para a delegacia.

Liguei para cancelar a palestra, sem dizer o verdadeiro motivo e liguei para meu amigo Júlio vir ao meu encontro, contando resumidamente o que ocorria e enviando-lhe nossa localização pelo WhatsApp.

Fomos para a delegacia, fizemos os depoimentos de praxe e o delegado de plantão, muito simpático, nos deixou ficar em uma pequena sala, enquanto dava prosseguimento ao caso.

Algumas horas se passaram, Júlio finalmente chegou trazendo comida e agasalhos.

Um perito do instituto médico legal foi acionado para examinar as peças recolhidas. O material foi levado para análise, com a autorização de um juiz da comarca, de plantão.

Pernoitamos na delegacia.

O fato chegou ao conhecimento da imprensa local e caiu nas redes sociais. Fotógrafos e repórteres chegavam a todo momento, ávidos por furos de reportagem. Evitei sair da sala que me foi destinada e Júlio funcionou como um Assessor de Imprensa.

Recebi inúmeras ligações e mensagens que deixei sem respostas, atendi apenas meus pais muito preocupados e os tranquilizei.

Finalmente, à tarde, chegou o resultado da análise. O que parecia ser restos mortais humanos - ossos - na verdade eram peças produzidas em impressora 3D.

Na verdade, Otávio desconhecia o conteúdo do maleiro, ele era apenas o motorista do Uber para a entrega, não lhe ocorreu consultar a papelada que acompanha a mercadoria - no caso, o esqueleto fake desmontado.

O delegado entrou em contato com o destinatário das peças que se prontificou a comparecer à delegacia.

O fato foi registrado em Boletim de Ocorrência, servimos como testemunhas e liberados, porém eu estava curiosa para conhecer o desfecho do caso.

Otávio se despediu aliviado e agradecido, prometendo ser mais cauteloso no futuro - ainda era inexperiente por estar iniciando seu próprio negócio de entregas, o Station Wagon lhe pertencia.

Apresentou-se ao delegado o Professor Simone Monteverdi, cujo trabalho requer ossos humanos. A possibilidade de construir réplicas através da impressão 3D diminui os custos. São utilizados no ensino e em diversas pesquisas mantidas pelo Orthopedics Institut do qual é diretor.

Satisfeita a curiosidade, acompanhada por Júlio, retornei. Cansada, deixei-o levar o carro e adormeci.

Fizemos uma parada no mesmo posto da ida, para um café.

Tive a surpresa de encontrar Otávio sentado em um banco. Parecia desolado.

Contou que o carro permaneceu no acostamento, ao ser considerado abandonado foi levado para um depósito público por policiais. A seguradora, por algum motivo, não mandou um guincho para tirá-lo.

Otavio esperava que alguém fosse buscá-lo no posto.

Dei-lhe carona outra vez, e Júlio se ofereceu como advogado para intimar a seguradora a se explicar, caso necessário entraria com Ação Indenizatória.

Dois anos depois, Otávio e eu nos casamos, sendo Júlio o nosso padrinho.