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Chovia fino.

O lusco-fusco do dia quase amanhecido, revela um vulto escondido numa copa de árvore.

Dilson Júnior manobra a carabina de dez tiros, e faz mira para disparar no vulto entre os galhos de pau-preto.

— Não atire, o latido não acusa onça — diz o vaqueiro Onofre do Borá.

E desceu da montaria.

Deixou a cravina no chã, amarrou uma lanterna na copa do chapéu de couro, prendeu na boca um punhal; e atou uma corda em volta da cintura.

Subiu.

 

Capítulo 9

Perto demais do coração selvagem.

 

 

Subiu na árvore.

No emaranhado da copa, deparou–se com uma figura simiesca, semelhante a um macaco albino. O bicho grunhia como os espíritos que rondam a noite na selva. Vaqueiro Onofre do Borá aproximou–se, jogou lanço certeiro. Prendeu o vivente com a grossa corda e puxou devagar. Aos poucos foi dominando a fera, e já no chão, por um descuido, a selvagem mordeu a panturrilha dele.  O ferimento doía, mas Onofre confundia a dor com prazer de ser mordido por uma fêmea do gênero humano.

— Quer que eu faça um unguento de folha verde, perguntou João Velho que acabara de chegar.

– Não tem chanana nem mastruz por aqui.

– Qualquer folha verde serve.

– Nem não.

Estressada, cansada de lutar em vão, para desvencilhar-se das cordas, a índia desmaiou.

– Esse bicho fede muito, seu Onofre!

– O bicho cheira a caça do mato, respondeu.

Onofre uniu as mãos em concha, soprou entre os polegares e o som quebrou o silêncio da mata, percorrendo um quarto de légua.

Alguns caçadores responderam com um assobio fino: Fííííu... fííííu...

João Velho mostrava ânimo, mas não chegou a tempo de dar os primeiros nós. Pururuca perdeu as armas e a vareta de açoitar cavalo.

Os outros vaqueiros traziam seu quinhão de medo, ofuscado na lanterna acesa, pois a madrugada já tomava vestes de noiva, alvorecendo, devagar no canto da passarada.

Caburé soltou canto assombroso, apregoando morte.

 Raposa apareceu no lugar da caça, é mau sinal.

– Alguém viu José Lino? Quis saber Onofre.

Ninguém deu notícia do vaqueiro José Lino.

Pururuca também não sabia. Perdera o contato com o companheiro. Vaqueiros tiveram o cuidado de esperar durante dois quartos de hora, assobiaram, cruzaram focos de lanterna no céu, tudo sem valia. Fizeram o que podiam. E nada de José Lino aparecer ou dar ares de vida.

Depois de meia hora de repouso involuntário, a índia recobrou as forças e puxada por uma corda seguia a marcha dos cavaleiros.

Espiados por tímidos raios de sol, coado entre os galhos, pegaram o caminho de volta para casa.

– O patrão prometeu dar uma bezerra a cada caçador de onça...

– Mesmo sem onça?

– A índia deve ser a onça que comia bezerros na fazenda.

– Quem fez a captura foi Onofre. Ele ganha a recompensa sozinho. Os outros não!

–Tanto faz ter chegado, na primeira hora, como na derradeira, a graça do santo para quem acompanhou a procissão é a mesma.

– Eia!

– Que foi agora?

– As armas.

— Pururuca perdeu.

— Perdeu as armas que ele levava de reserva, mas cada um tem a sua.

– E para que as armas? Vai matar a índia?

– Atirar pra cima, dando sinal de chegada.

Alguns projéteis foram deflagrados.

A marcha segue no compasso do ranger da sela, quebrado pelo barulho das pedras atiradas pelos cascos da montaria. 

Onofre resmunga:

Fizeram diferente da ordem recebida de formar uma trempe. O rapaz da cidade precisava ser olhado por ele, Onofre. Mas, João velho deveria ter se manifestado, formado equipe com o filho e mais outro. Nem não! Saíram de dois em dois, e João, sozinho.

Depois de puxarem léguas e léguas no meio da mata, a sede da Fazenda Campo Grande é avistada. Apenas seis dos sete vaqueiros imbuídos de caçar a onça, voltam para casa.

Campo Grande já despertada, cria uma sombra de medo.

 —Tá faltando um vaqueiro.

Outro completou: “Se está faltando um, a onça comeu.”

— Cruz, credo! Vira esta boca para lá, Capistrano!

Com os cotovelos apoiados no peitoral da varanda, Batista Generoso soltava baforadas, puxadas do cigarro de palha que fumava.

Aliviado, exclamou:

– Essa é a onça que comeu o bezerro da Mimosa?

– Se comeu, não sei. Mas é uma índia fêmea!

– O bicho fala?

– Prezei ela dizer: “Panhkhé Araué Apinajé Maxacali.”

Generoso conclui que, a selvagem, provavelmente, é de tribo aldeada com outras nações indígenas e que tem ramificação Apinajé em Águas Formosas. Ela pode ter feito alusão a algum antepassado seu da Aldeia Apinajé Cipozal, região de Tocantinópolis, outrora denominada Boa Vista do Padre João.

— Será que ela vem de tão longe assim?

— Tocantinópolis é longe. Águas Formosas nem tanto.  Pelo sim, pelo não, daremos à índia capturada o nome Apinajé.

Apinajé não tardou a revelar hábitos de homem branco.

 Ela não devorava carne como uma fera. Suas papilas conheciam o gosto agradável do sal, e se deleitavam mais da conta, quando encontravam alguma guloseima doce para comer.

O Coronel João Batista de Montescalmos, percebendo que a nudez da selvagem se tornara o centro das atenções masculinas, chamou, em voz alta, a esposa.

– Corina, chegue aqui! Traga uma roupa sua para cobrir este vivente!

Curiosa, ela também queria comtemplar aquela criatura, para alguns, um macaco albino, para outros, a deusa de pele vermelha.

– Nossa, o cheiro é bom, a mulher, feia!

Generoso sabia que era exatamente o contrário e nada disse.

Não era prudente tecer elogios a uma mulher que não fosse a sua, principalmente, na presença dela. Apinajé era bonita, pelo menos aos olhos de Onofre, do patrão dele, e de outros homens que não tiravam seus olhos da selvagem seminua.

– Que fazer com ela, Coronel?

– Cuide dela. Amarre na casinha de curral. Na sombra, presa só pelos pés, com corda comprida. Dê água e comida. Ela é sua. Quem amansa burro bravo, haverá de domar também outra fera. Se com trinta dias não entregar os beiços, solte e deixe ir embora. Não acredito que ela fez churrasco do bezerro de Mimosa.

Onofre cuidou.

Cuidou com tanto zelo, que não era mais um solteiro órfão e solitário. Dividia com Apinajé todo o descanso dele após as refeições.

Durante os primeiros dias, a índia só aceitava fruta e água. Rosnava feito cão raivoso e nem olhava para a comida de sal que lhe era oferecida. Foi quando Onofre se lembrou de dar carne chamuscada, só lambida de fogo. Ela comeu e ficou reparando o escapulário no pescoço de Onofre. Ele retirou o relicário e pôs no pescoço da índia. Estavam casados agora, no entender dela.

Olharam-se demoradamente.

Apinajé não tinha mais aquele olhar de cabra morta.

 Onofre sorriu.

 Ela chorou, quanto ele retirou-se apressadamente.

Precisava receber instruções do patrão sobre o fazer para encontrar o vaqueiro desaparecido.

Eram quatro horas da tarde.

O fazendeiro recomendou que fossem procurar José Lino.

–  Não quero mais saber de onça! Quero o vaqueiro, nem que seja dentro de um saco. Quem for, deve levar Xerém. É mulo sestroso, mas tem casco firme, bom pra enfrentar pedregulho e sovado de serra.

– Quero ir só, disse Nhô. Tenho uma conta a acertar com a pintada.

— Não brinque com onça, João! Não tens a mesma destreza dos tempos de sua mocidade.

— Vou só. A mim ela deve o sangue que derramou de meu filho.

Deus o acompanhe, disse uníssona meia dúzia de vozes.

Foi.

Gente grande e pequena acompanhou, com olhar curioso João Velho galopar em direção às Sete Passagens.

– Vá com Deus, João. Não demore, disse Eusébia.

Tinha chovido fino, e assim foi fácil seguir as pegadas dos animais usados pelos vaqueiros.

Na furna da onça, o pai de José Lino não viu sinal algum de gente viva ou morta. Só rastros das montarias.

Destemido, desceu o despenhadeiro, guiado por Vintém, um cão velho de pouco faro, desde novo. Mas alguma coisa Vintém pressentiu.

João Velho viu a vegetação rasteira amassada, e marcas de sangue no chão. Tirou o chapéu e se benzeu. 

 “Meu Deus, a onça comeu meu filho!...Deus se lembre da alma dele.” 

Sua garganta travou sedenta de vingança.

Bebeu água e afastou–se precavido: a onça pode voltar a qualquer momento para fazer o repasto da presa.

Cavalgou mais meio quarto de légua, e estacou.

Puxou os freios, firmou os pés nos estribos e ergueu o corpo, de modo que pudesse ter maior ângulo visual do provável campo de batalha que se delineava em sua mente.

 O silêncio ensurdecedor da mata o perturbava.

 Nem uma folha sequer, se movia, porque vento não tinha, ou não lhe soprava favorável.

Estava ficando escuro.

Era hora de encerrar a jornada daquele dia.

A luz não favorecia um tiro certeiro e lhe pareceu mais seguro descansar.

Então, ele pendurou a rede no mais alto galho, e banhado pelo orvalho, profundamente dormiu.

 

***

Texto: Adalberto Lima - fragmento do livro Estrela que o vento soprou.

Imagem: Internet