Viajando nas estrelas

Pegou a estrada no fim de semana para espraiar um pouco a cabeça cheia de problemas. Não tinha endereço certo e seguiu apenas o impulso que recomendava que mudasse de ares, nem que fosse apenas por algumas horas, o suficiente para que relaxasse um pouco das tensões do cotidiano.

A sua rotina de vida era enervante e quase sempre lhe desencadeava pensamentos descontrolados que complicavam ainda mais as coisas. Mesmo sabendo que seria uma solução meramente paliativa, foi em frente para ver no que ia dar. O que lhe custaria?

O seu carro, por ser muito confortável e rápido, fez que se sentisse importante enquanto o dirigia, proporcionando-lhe uma sensação de potência e liberdade, permitindo que vivesse o puro êxtase existencial que apagasse da sua mente as incongruências da vida nas grandes cidades.

Mesmo porque o contato com a natureza atuaria como um bálsamo e uma espécie de volta ao passado, mais precisamente ao tempo em que morara em diversas cidades do interior por força de suas atribuições regimentais, o que lhe despertaria agradáveis sensações adormecidas há anos.

Nem o ar condicionado ligou, apesar do calor de verão. Queria sentir o vento e o sol batendo no seu rosto através da janela aberta, de modo que aspirasse o odor dos campos verdejantes à sua volta. Nessa hora, gostaria que o veículo fosse conversível, como nos bons tempos.

Mas, alguém em seu juízo perfeito teria coragem hoje em dia de andar nas ruas com um carro com o interior totalmente exposto? No primeiro sinal que parasse os ladrões roubariam tudo que estivesse dando sopa, e sobraria somente a sua roupa de baixo, se estivesse num dia de sorte.

Na verdade, não se lembrava de ter visto nenhum assim nos últimos trinta anos. Que tristeza! O cidadão havia perdido a liberdade de possuir o bem de seu agrado, com receio de chamar a atenção dos amigos do alheio, que nos últimos tempos proliferavam como ratos nas galerias de esgotos dos grandes centros populacionais.

Dirigiu aproximadamente por três horas sem parar, nem mesmo para ir ao banheiro, esquecendo totalmente que depois de algum tempo o organismo exige a observância rigorosa desse importante detalhe fisiológico. Era como se não estivesse mais em seu corpo, apenas vagasse pelo loucos campos da imaginação, em que tudo funcionava como um relógio suíço, enquanto aspirava o cheirinho de mato que lhe invadia as narinas atrevidamente, e inebriava o seu ser com o delicioso néctar da natureza, que explodia à sua volta com matizes variados que se alternavam continuamente, oferecendo ao seu olhar uma visão prévia do que poderia ser o Éden.

Por fim, estacionou diante um vale imenso cercado de altas montanhas que exibiam ao longe uma cor azulada, em face dos efeitos da luz refletida do astro-rei, enquanto nuvens fugidias acariciavam os seus flancos suavemente, sempre ao sabor de uma brisa que oferecia pleno movimento àquele quadro surreal, permitindo que essas imagens explodissem em pujança e grandiosidade, enquanto as aves planavam ao redor e preenchiam os espaços vazios existentes com cantos, formas e cores espetaculares que acariciavam os seus ouvidos com os sons que emitiam em uníssono.

Ainda que a noite chegasse com o seu pesado manto e encobrisse essa paisagem com um matiz cinza escuro, mesmo assim não conseguiu tirar a beleza desse recanto, em razão das débeis luzes das estrelas o clarificarem com cores azuladas, como se fossem milhões de pirilampos valsando ao som de fundo proveniente do imenso universo.

Nesse momento indescritível, ainda recheado de ruídos e imagens deslumbrantes, deixou-se quedar absorto em pensamentos profundos diante da beleza que se descortinava, sendo aos poucos engolfado pelo abraço imaginário desse ambiente acolhedor, o que acabou por relaxar o seu espírito, agora totalmente reconfortado.

O amanhecer o surpreendeu deitado em verdes pastos e cercado de ovelhas em bandos que circulavam à sua volta, como se ele fizesse parte permanente daquele cenário bucólico de terna quietude.

Foi quando se deu conta que mesmo diante das incertezas existentes num mundo conturbado, a sensibilidade humana sempre encontra a reciclagem necessária para que uma alma sequiosa desfrute dos valores que nortearam antigas gerações

Cronista
Enviado por Cronista em 21/02/2019
Reeditado em 21/02/2019
Código do texto: T6580916
Classificação de conteúdo: seguro