Pugs!
Ao cair da noite, Jeanne-Marie Cotillard foi conduzida por um guia silencioso e impassível através de um caminho sob as árvores, na lateral da Mansão Berthelot. O caminho terminou numa grande clareira, onde fora erguido um prédio anexo, circular, num belo estilo neoclássico palladiano que lembrava um templo da Antiguidade. O guia virou-se para ela e perguntou:
- Você está pronta?
- Sim - respondeu ela, tentando parecer mais firme do que realmente se sentia.
- Eu a acompanharei até a porta - prosseguiu ele. - A partir daí, é com você.
Caminharam até a porta do pseudo-templo pagão e a primeira coisa que Jeanne-Marie percebeu, foi que não havia uma aldraba. "Bem, não deveria mesmo esperar que houvesse uma", pensou. "Ninguém vai bater nesta porta". A segunda coisa, eram as marcas de arranhões na madeira.
Ao seu lado, o guia puxou uma faixa de lã cinzenta do bolso do casaco. Ela abaixou a cabeça e ele a vendou. Em seguida, deu-lhe um tapa um pouco menos que amistoso na espádua esquerda.
- Vai! - Exclamou.
Mãos estendidas para a frente, ela deu dois passos hesitantes até tocar na solidez maciça do carvalho da porta. Ficou parada por alguns instantes, criando coragem. Finalmente, arranhou a porta com as unhas. Uma, duas, três vezes. Nada aconteceu.
"Mais forte", pensou. Voltou a arranhar a madeira, com mais vontade, por três vezes. Dessa vez, não era possível que não houvessem ouvido; mas, novamente, nenhuma reação.
"É bom que funcione, ou vou acabar no sabugo", lamentou-se. Arranhou a porta com força, sentindo a resistência da superfície sob as unhas. E, ao mesmo tempo, começou a uivar, como uma cadela abandonada na porta de casa.
Funcionou. Quase desequilibrou-se quando a porta foi finalmente aberta, de supetão e seu rosto foi atingido por uma agradável onda de calor com perfume de sândalo.
- Você tem medo do diabo? - Ouviu perguntar uma voz masculina cavernosa.
- Não! - Gritou.
Alguém a puxou pelo braço esquerdo para dentro, e a porta fechou-se atrás dela.
* * *
Embora tentassem manter absoluto silêncio, percebeu que estava rodeada de pessoas em meio a um aposento amplo e aquecido, onde havia uma lareira queimando pinho. O piso, sob seus pés, era de pedra; mármore, talvez. O homem que a havia puxado voltou a falar, no mesmo tom intimidador:
- Você está pronta para usar a coleira da obediência e as cadeias da submissão?
- Eu estou - respondeu, tentando soar convincente.
Uma coleira de couro áspero roçou sua pele ao envolver o pescoço, e foi fechada com folga, de modo que não chegou a incomodar. Em seguida, uma corrente fina foi atada ao seu pulso esquerdo e direito.
- Você está pronta para ser apresentada à Assembleia?
- Eu... estou.
Alguém, muito provavelmente o mesmo homem que lhe falara, segurou a sua mão direita, e sem muita delicadeza, começou a caminhar com ela. O piso de pedra lisa foi substituído por um carpete felpudo. Começaram a andar em círculos, ao mesmo tempo em que um formidável alarido ergueu-se ao seu redor: uivos, latidos, gargalhadas histéricas, chacoalhar de correntes e vozes roufenhas que gritavam: "memento mori, memento mori"! Tremendo feito vara verde, Jeanne-Marie cerrou os dentes, segurou com força a mão do homem e concentrou-se nas voltas que dava sobre o tapete, como um cão selvagem amassando o capim antes de dormir.
Nove voltas. Quando achou que não ia aguentar mais, o barulho cessou, tão bruscamente quanto começara, e o seu condutor soltou sua mão. Aguardou, imóvel, enquanto tentava recuperar o autocontrole abalado. O silêncio, contudo, não durou muito. À sua frente, uma outra voz masculina perguntou, incisivamente:
- Está pronta para beijar o traseiro do Grande Pug como sinal de devoção?
"E essa agora", pensou, antes de responder audivelmente:
- Sim.
Ficou estática até sentir algo ser comprimido contra seus lábios: inodoro, frio e duro. Porcelana. Deu um beijo estalado.
- Que grande alarido foi esse que acabei de ouvir? - Indagou o homem à sua frente.
Em uníssono, vozes masculinas e femininas ergueram-se ao seu redor:
- Aqui entrou uma perra que não é Pug! Os Pugs a querem morder!
A voz agora dirigiu-se ao seu condutor, que, pelo visto, continuava ao lado dela em silêncio. O diálogo foi efetuado numa troca rápida de perguntas e respostas.
- Ao que veio ela?
- Veio tornar-se uma Pug.
- E como é possível tal metamorfose?
- Juntando-se a nós.
- Ela está convicta de sua decisão?
- Sim, Grão-Mestre.
- Ela está disposta a obedecer aos estatutos da Sociedade?
- Sim, Grão-Mestre.
- Foi a curiosidade que a trouxe aqui?
- Não, Grão-Mestre.
- Foi trazida aqui por interesses alheios?
- Não, Grão-Mestre.
- Então, o que a motiva?
- A vontade de fazer parte de um corpo, onde os membros são infinitamente estimados.
- Pergunte a ela se está pronta para fazer seus votos.
A pergunta foi repetida pelo homem ao seu lado.
- Está pronta para fazer seus votos?
- Sim - respondeu com convicção.
- Traga a postulante até mim - disse o Grão-Mestre.
O condutor soltou a corrente que unia os pulsos dela, prendeu uma das pontas à coleira e puxou-a pela outra ponta - como um cachorro. Alguns passos adiante depois, segurou no braço dela para que parasse, soltou a corrente e colocou a mão direita dela sobre um objeto, em cima de uma mesa; pelo tato percebeu tratar-se de um espelho, de cabo comprido.
- Repita o que vou dizer, palavra por palavra - disse então o Grão-Mestre, que pelo visto estava sentado atrás da mesa diante da qual ela estava. Jeanne-Marie apenas balançou a cabeça, afirmativamente.
- Eu prometo à esta ilustre Assembleia e a toda a Sociedade dos Pugs...
Aguardou que ela repetisse.
- ...que observarei suas leis e estatutos, e que não revelarei jamais, nem de viva voz, nem por figuras, nem por escrita, seus segredos e mistérios. Eu prometo, por minha honra, a manter a promessa que acabei de fazer, de modos que se a quebrar, aceito ser apontada por toda a Sociedade como uma pessoa desonesta, e a renunciar para sempre ao amor terreno e ao uso do espelho para cuidar de minha beleza.
Jeanne-Marie engoliu em seco, mas repetiu palavra por palavra. Ao fim, o Grão-Mestre dirigiu-se novamente ao condutor:
- Pergunte a ela se deseja ver a luz.
E ele:
- Você deseja ver a luz?
- Sim - respondeu com convicção.
Sentiu o nó da venda em sua nuca ser desfeito. Respirou fundo, e em seguida, abriu os olhos que até então mantivera fechados.
* * *
Viu-se no meio de um amplo salão circular, iluminado por um grande candelabro de velas, e cercada por rostos conhecidos: Albertine, o Dr. Duverger, Madame Camille Charbonneau, Ada Ballesdens, o furriel Parmentier e até mesmo Océane Vallotton, a dona da cordoaria. O Grão-Mestre, ficou sabendo depois, chamava-se Lambert Besson, e era leiloeiro em Lyon. O seu condutor era um ferreiro, Jean-Jacques Duchemin. Os presentes seguravam todos um pug de porcelana na mão esquerda, e na direita, uma espada, se homens, ou um espelho de cabo comprido, se mulheres.
O Grão-Mestre a observava, detrás de sua mesa coberta com uma toalha branca, sobre a qual via-se um grande pug de porcelana (provavelmente o mesmo que ela fora obrigada a beijar), uma espada e o espelho de cabo comprido sobre o qual ela fizera o juramento. Ergueu-se, aproximou-se dela, e mantendo-a à sua direita, disse:
- Todas esses rituais de que participou, não são mais do que preliminares para introduzi-la na Sociedade. Em seguida, você irá aprender os sinais e frases que os Pugs usam para reconhecer uns aos outros. Tem alguma pergunta a fazer antes disso?
- Sim... no momento em que me foi perguntado se tinha medo do diabo, se eu houvesse respondido "sim", o que teria acontecido?
O Grão-Mestre olhou ao derredor, e todos pareciam estar se divertindo com a pergunta. Voltou-se para ela e disse:
- Você seria puxada para dentro, de um jeito ou de outro... mas provavelmente, iria desmaiar na hora em que fizemos a nossa algazarra. Aí, infelizmente, teríamos que declinar sua admissão no grupo.
Inclinou-se sobre ela e e removeu a coleira e a corrente, os quais depositou sobre a mesa. E concluiu:
- Mas você tem fibra, Jeanne-Marie Cotillard. Vamos precisar de mulheres como você em Paris!
- Paris...? - Ela quase engasgou.
- Temos uma revolução a fazer - respondeu o Grão-Mestre, dando-lhe uma palmada afetuosa na espádua esquerda.
- [15-08-2017]