Bowl

Pigarreei, e comecei a ler o livro de folhas amareladas que haviam retirado da minha mochila confiscada:

"A bruma da manhã estava se dissipando sobre o campo de batalha, protegendo a retirada dos últimos cherokees sob o comando de Di'wali, o chefe guerreiro que os brancos conheciam como The Bowl. Havia sido uma luta feroz contra as forças texanas, melhor organizadas e armadas. Di'wali sabia, desde quando recebera o ultimato do presidente da República do Texas, que não poderia enfrentar tropas regulares, e que a única possibilidade de sobrevivência para seu povo seria abandonar as terras que ocupavam e partir para algum outro lugar. Onde, não sabia exatamente. Vinham vagando entre o Texas e o México por um longo tempo, e Di'wali sofrera sucessivas traições de ambos os governos, incapazes de respeitar os tratados que assinavam. Nunca admitiam que os índios se tornassem donos dos territórios férteis que ocupavam, franqueados à colonização dos fazendeiros brancos; sempre expulsando os índios mais para o oeste, mais para dentro do deserto, em terras inóspitas onde a vida era praticamente impossível.

Di'wali estava cansado. Havia exortado seus homens a combater com bravura, até praticamente esgotar a munição. E então, havia ordenado a retirada. Partiram quase todos na calada da noite, menos ele. No seu cayuse malhado de branco e preto, cavalgou até o alto de uma colina, de onde podia ver o acampamento adversário. Os texanos haviam armado suas tendas e faziam fogo para o café da manhã. Apontaram em sua direção ao vê-lo, solitário, no alto da colina. Pode ouvir claramente seus gritos, apesar da distância:

- The Bowl! The Bowl!

Não era possível ser confundido com qualquer outro. O cabelo vermelho comprido, herdado do pai escocês, sob um chapéu militar, e a espada desembainhada na mão direita eram suas credenciais. Di'wali aguardou, imóvel, sua silhueta recortada contra o céu da manhã, enquanto os texanos agrupavam suas forças e começavam a subir a encosta da colina, armas na mão. Ergueu então a espada, e gritou o brado de guerra cherokee:

- Gurahiyi!

Os texanos atiraram por todos os lados. O cayuse foi atingido e caiu. Em seguida, foi a vez dele também ser baleado. Incapaz de se erguer, mas ainda sentado sobre a colina, Di'wali começou a entoar um canto de guerra, o qual jamais terminou. O comandante dos texanos sacou o revólver, e posicionando-se ao seu lado, disparou uma única vez contra a sua cabeça."

Fechei o livro e encarei o oficial da SS que me encarava do outro lado da escrivaninha com um sorriso sardônico no rosto.

- E foi assim que tombou, The Bowl, também conhecido como Chefe Bowles, em 16 de julho de 1839 - declarei enfaticamente.

- Felizmente, somos mais civilizados do que os seus texanos, tenente Fuller, ou teríamos metido uma bala na sua cabeça quando foi capturado ao saltar sobre a Normandia - comentou ele num inglês perfeito.

- Ainda não havia Convenção de Genebra naquela época - retruquei. - Mas agora já sabe a origem do nosso grito de guerra.

- Que vocês, erroneamente, pronunciam "currahee" - alfinetou ele.

- Assim é... algo se perde na tradução - dei de ombros.

- E sabe o que é mais irônico? - Prosseguiu ele. - O fato de vocês, que promoveram um extermínio quase perfeito de seus povos inferiores, terem se juntado com os ingleses decadentes contra nós.

Não pude deixar de sorrir.

- Não, isso não é o mais irônico, Herr Obersturmführer. Diferentemente de vocês, nós, americanos, somos um caldo de culturas; aproveitamos o que há de melhor em cada uma delas, e crescemos com isso. Di'wali caiu, mas como pode notar, seu grito de guerra ainda ecoa pela Normandia, mais de 100 anos depois. Nós reconhecemos o valor de um inimigo, mesmo que o derrotemos.

E olhando para a janela aberta atrás da escrivaninha, vi no céu escuro da França clarões provocados pelo fogo de artilharia antiaérea. A invasão da Normandia continuava.

Currahee!

- [12-06-2017]