O ANDARILHO

ERA NOITE, e o céu estava límpido e carregado de estrelas; e uma lua quase cheia completava o cenário mágico daquele momento. Os olhos de Juan de la Cruz brilhavam refletindo o luzeiro natural que o cercava e miravam distantes como a buscar imagens perdidas em algum lugar do tempo. Em sua volta era só mar que se estendia em infinita escuridão; e em torno de si, no convés da embarcação, quase toda a tripulação acomodada como podia; sentados em rolos de cordas, no piso ou mesmo escorado em alguma âncora - a menos do piloto que se encontrava na cabine as volta com o timão do barco e o cozinheiro que ainda se ocupava nos afazeres pós janta - aguardavam ansiosos Juan quebrar o silêncio que os envolvia, para contar mais uma de suas aventuras acumuladas nos 53 anos de vida e 13 anos de andanças vividos nesse mundo de meu Deus.

Após acender o cigarro, um dos marujos que estava sentado mais próximo de Juan, não contendo a ansiedade, exclamou de chiste: - Avia seu Juan, amanhece e o senhor não conta esse caso!

Juan de la Cruz como que tomado de susto, lançou lhe um olhar tão intenso e carregado de brilho que o marujo estremeceu; pensou por um momento estar cara-a-cara com o próprio Drácula, interpretado por Christopher Lee na tela do Cine São Raimundo, em Areia Branca onde morava.

- Que é isso, tá com medo Miguel? Seu Juan não vai lhe morder não! - disparou um colega e os demais caíram na gargalhada; Miguel era um codinome usado pelo marujo, visto que todos na embarcação também usavam codinomes.

Realmente Juan de la Cruz parecia uma caricatura do famoso ator, mas seu rosto tinha uma compleição tão magra que os ossos zigomáticos que se localizam logo abaixo dos olhos se destacavam em sua face, deixando-os mais profundos; os cabelos negros de uma vasta cabeleira já começavam a embranquecer nas têmporas; e com aproximadamente um metro e setenta e de corpo esguio, andava sempre empertigado à semelhança de um lorde inglês.

Juan não pertencia à tripulação e fora embarcado próximo ao porto de Bragança no Pará, por conta e risco do destino. O barco que media 17 m de proa a popa vinha da Guiana francesa com um carregamento de contrabando de whisky e perfumes, - numa operação clandestina em que procurava ao máximo não precisar ancorar, principalmente em locais que possuíam postos da Capitania dos Portos - e quando já em águas do Pará apresentou um problema de ordem elétrica no maquinário que não pode ser resolvido pelo maquinista e o barco foi obrigado a ancorar em uma praia próximo à foz do rio caeté no Pará, quando o maquinista que utilizava o codinome de Godofredo, juntamente com o marinheiro Miguel foram incumbidos de conseguir um profissional no porto de Bragança a aproximadamente 10 km do lugar aonde se encontravam ancorados; de carona em um barco de um pescador local chegaram na cidade através do rio caeté e pelo próprio pescador foram informados de que Juan de la Cruz, chegado há pouco tempo na cidade, havia trabalhado no conserto de embarcações locais.

Encontraram Juan hospedado numa modesta pensão próximo ao centro da cidade; arredio e com olhar perscrutador quis saber detalhes da embarcação; quem eram os integrantes, de onde vinham e para onde iam. Godofredo informou que o barco era pequeno e tinha uma tripulação de seis homens e mentiu lhe dizendo que haviam feito uma viagem com um carregamento de sal de Areia Branca no Rio Grande do Norte para Manaus e que estavam voltando com algumas encomendas de mercadorias para abastecer o comércio de Areia Branca, Macau e Mossoró, quando o barco enguiçou ali próximo ao rio caeté.

Juan de la Cruz lhes contou que há muito vivia como andarilho e que estava na cidade há pouco tempo e que pretendia seguir viagem rumo ao sul e se eles não poderiam leva-lo até Areia Branca e de lá ele seguiria viagem por outros meios; no que Godofredo ficou de conversar com o comandante, mas enfatizou que o importante naquele momento era o conserto da embarcação. Juan topou.

- Ligue o motor! – gritou Juan da casa de máquinas após a execução do serviço de reparo. – ou essa geringonça funciona ou não me chamo Juan de la Cruz!

O barco partiu com Juan a bordo. O comandante achou prudente mantê-lo na embarcação a bem da segurança, caso o barco viesse apresentar qualquer problema no caminho. A partir daí, em toda folga Juan era chamado para suprir a curiosidade da tripulação sobre suas aventuras de andarilho.

Após recompor-se da intervenção de Miguel, Juan acomodou-se melhor e dissertou:

- Bem, nessa época eu tinha 32 anos, estávamos no ano de 1961 e ainda não era um andarilho; trabalhava como servidor civil no Arsenal de Marinha na Ilha das Cobras no Rio de Janeiro na Divisão de Oficinas de Eletricidade no setor de manutenção de embarcações da Marinha. Nesse tempo eu morava num apartamento de um velho sobrado da Rua Uruguaiana e todos os dias fazia o percurso de ida e volta a Ilha das Cobras a pé; pegava a Av. Presidente Vargas, atravessava a Av. Rio Branco e pela lateral da Igreja Nossa Senhora da Candelária alcançava a Rua Primeiro de Março e daí pela Av. Rodrigues Alves até a Ilha; na volta fazia o caminho inverso.

Certo dia no caminho de ida, quando chegava já próximo a Igreja Nossa Senhora da Candelária, caiu uma chuva repentina que me obrigou a correr para abrigar-me na igreja; fiquei na porta de entrada, onde já era suficiente para me proteger da chuva, quando de repente, notei uma moça de braços dados com uma senhora dos seus setenta e poucos anos que tinha dificuldade de se locomover na chuva e que também tentavam chegar até a igreja; corri para ajuda-las a chegar até a entrada. A jovem agradeceu-me, foi então que pude notar a sua beleza: cabelos pretos e escorridos; o formato do rosto e os olhos parecendo de origem indígena, mas de nariz perfilado e um sorriso suave e mágico; aparentava uns vinte e cinco anos. Logo após adentrarem na igreja, a chuva passou e pude prosseguir viagem para o trabalho.

Nesse momento Juan parou um pouco para respirar, enquanto um ou outro aproveitou para acender um cigarro. – Vamos lá seu Juan, essa história tá ficando boa – comentou um deles.

E com os olhos distantes no horizonte, Juan prosseguiu a narrativa.

- Fiquei vário dias com aquele rosto na mente e passou a ser obrigatório na passagem para o trabalho, dar uma paradinha na porta da igreja para ver se a via, e nada. No sábado resolvi arriscar a ir à missa para ver se a encontrava. Quando cheguei, a missa já havia começado e como não pude avistá-la, fui o primeiro a sair e de longe pude vê-la saindo com a senhora. Não resisti e as segui de longe; segui-as até a Avenida Marechal Floriano, e pude ver que elas adentraram pela escada de um pequeno sobrado, próximo a um bar de esquina de um português de quem, a partir daquele dia passei a ser freguês, após os expedientes de trabalho. Nesse interim, perguntei ao portuga sobre aquelas mulheres, no que me respondeu que só as conhecia de vista e que também havia um senhor que geralmente nas terças e nas quintas à noite as visitavam.

– Um dia ele parou aqui para comprar cigarros e tomou uma cerveja; tivemos uma conversa curta e ele me falou que era capitão de navio. – completou o português. – às vezes ele some por uns tempos; deve ser quando viaja. – disse finalmente.

Juan nesse momento suspirou e seus olhos expressaram um ar melancólico, baixou os olhos, olhou para os lados como a procurar alento e continuou.

– Como estávamos numa quinta feira, decidi ficar no bar até um pouco mais tarde e pude ver um cavalheiro muito bem vestido de terno e aparentando uns quarenta e poucos anos adentrar o sobrado; deduzi daí ser algum parente. No sábado seguinte voltei a Igreja e na saída simulei encontro casual com as duas mulheres; aproximei-me: “Olá, Como vai?”. “Olá!” - Respondeu-me com simpatia. “Meu nome é Juan de la Cruz e o seu?”. “O meu nome é L***** e o de minha avó é M*****”. Conversávamos enquanto andávamos; ofereci-me para acompanha-las até em casa, no que ela aceitou de bom grado.

Nesse momento uma onda chocou-se com a embarcação e Juan tombou para o lado e não fosse um marujo segurá-lo pelo braço correria o risco de ter sido jogado no mar.

- Se segura seu Juan, o senhor não pode morrer antes de terminar essa história! – exclamou Godofredo; e todos caíram na gargalhada.

Juan acomodou-se novamente e continuou.

- No outro sábado encontramo-nos novamente após a missa; convidei-as para irmos a uma sorveteria e ela aceitou. Na sorveteria aproveitando que sua avó havia ido ao toilette, convidei-a para ir ao cinema e ela aceitou. “Mas só poderei ir no próximo sábado, porque minha avó vai visitar um parente”, respondeu. “Então passo na sua casa para pegá-la às sete horas!”, “Não!” – respondeu-me incisiva e explicando-se que não queria dar trela para a vizinhança que era muito fofoqueira. Combinamos encontrarmo-nos em frente ao cinema.

Juan suspirou: – Eu era tímido. No cinema foi ela quem pegou na minha mão e no final nos beijamos. Combinamos encontrarmo-nos novamente no outro sábado e quando ela chegou o filme já havia começado e então para minha surpresa ela se convidou para conhecer meu apartamento.

Juan fez uma pausa e parou para sentir a brisa marinha. A noite era mágica.

- Ao chegar no apartamento abri uma garrafa de vinho e ficamos na janela apreciando a lua sob calorosos beijos, quando ela começou a tirar a minha roupa, incitando que retirasse a dela. Deitou-se na cama totalmente nua; era linda; seu corpo moreno vestiu-se com a prata da lua e nos amamos loucamente. Por já ser hora avançada da noite, deixei-a próximo à sua casa e nos despedimos com um beijo.

Juan deu outro suspiro:

- Acordei feliz, aliás, senti-me o homem mais feliz do mundo! Mas uma coisa me perturbava: O visitante. Não havia lhe perguntado sobre ele, porque não saberia explicar-lhe de como sabia de sua existência. Após o trabalho resolvi tomar uma cervejinha no bar do português; era uma terça feira. Na segunda garrafa, vi quando o visitante adentrou a sua casa. Vários pensamentos vieram na minha cabeça; estava com ciúmes; estava confuso. Não me lembro quantas cervejas tomei. O bar fechou e a rua estava vazia; passei em frente ao sobrado e o portão que dava acesso à escada estava aberto. “Àquela hora e aquele cara ainda não havia saído?” – questionava-me.

Juan parou, balançou a cabeça negativamente como a reprovar a se mesmo e continuou.

- Decidi subir as escadas e ao chegar na porta de entrada, pareceu-me ouvir sussurros no interior do apartamento e encostei o ouvido na porta para melhor ouvir. A porta estava só encostada e talvez por já estar meio bêbado, desequilibrei-me e caí na soleira da porta. Ouvi um grito de mulher, provavelmente dela; e passos vindos em minha direção; levantei-me apressadamente e desabei em correria escada abaixo; no último degrau escorreguei e caí na calçada; nesse momento senti uma forte dor no pé, mas mesmo assim sai correndo em disparada, dobrei a esquina e sumi rumo ao meu apartamento.

- Que azar em seu Juan? – exclamou Miguel.

- Nessa noite não consegui dormir com dores no pé e logo pela manhã fui ao hospital e voltei com o pé engessado; estava fraturado. Fiquei um mês com o gesso e não queria encontra-la naquela condição. Temia que tivesse me visto ou vendo-me naquela condição pudesse fazer deduções. Resolvi esperar pela minha melhora; e no mesmo dia em que tirei o gesso, fui à noite no bar do português. Pedi uma cerveja e logo notei que as luzes do sobrado de L***** estavam apagadas. “Devem ter saído” – pensei. Mas uma cerveja e outra e as luzes continuavam apagadas. “alguma novidade?” perguntei ao português. “Novidade por aqui é que aquela senhora que morava naquele sobrado faleceu”. “Faleceu?” – indaguei aflito! “Pois é, parece que a velha assustou-se com um ladrão que tentou entrar na sua casa e como já sofria do coração, poucos dias depois bateu as botas”. “E a neta dela?”- perguntei com o coração saltando pela boca. “Há rapaz, sabes daquele senhor que sempre visitava a casa? Pois o gajo era casado e tinha um caso com a netinha da velha; após a morte dela, ele não contou conversa; largou a esposa e se mandou com a menina; dizem que para uma cidade pras bandas do norte.”

Outra onda sacudiu Juan de la Cruz, mas dessa vez ele se segurou.

- E aí Juan, lascou-se! – Exclamou Miguel. Ninguém riu. Juan vertia uma lágrima que brilhava sob a luz da lua.

Juan de la Cruz recuperou-se da emoção e concluiu.

- Depois daí, larguei tudo; botei uma mochila nas costas e ganhei o mundo...

Quis continuar, mas o capitão gritou da cabine: Vão dormir gente, que de madrugada nós vamos chegar em Areia Branca!

- Seu Juan...seu Juan! Acorda que já chegamos!

O sol ainda não tinha surgido na barra. Da embarcação avistava-se o farol da praia de Upanema.

- Seu Juan, o senhor desembarca aqui. Miguel vai lhe levar de paquete até a praia e vai lhe ensinar como chegar a Areia Branca, é pertinho. – disse-lhe o comandante.

Ao chegar na praia Juan perguntou: E vocês por que não desembarcam?

- É porque ainda vamos ter que entregar as mercadorias aos clientes em Porto do Mangue e Macau!

Miguel ensinou o caminho a Juan e despediram-se. – Boa sorte seu Juan, quem sabe o senhor não encontra aqui uma mulher que vai lhe fazer esquecer a L***** ! – brincou Miguel .

Juan sorriu com a espirituosidade do marujo e seguiu rumo à cidade, extasiando-se com a beleza das dunas de sal que encontrava pelo caminho; logo na entrada da cidade pediu informações a um carroceiro que o ensinou a chegar até ao mercado público.

Alcançou o mercado pela Rua Francisco Ferreira Souto que na época denominava-se Rua Silva Jardim; o dia amanhecia.

Na feira reportou-se a um senhor que ainda arrumava a sua barraca de vendas juntamente com um rapazote.

- Bom dia senhor! – cumprimentou Juan.

- Bom dia comandante! Afonso às suas ordens! – respondeu o senhor.

- Onde eu posso tomar um café da manhã?

- Pois não senhor! É logo ali em Barôncio! – Falou apontando a venda. – mas se o senhor estiver precisando de correia de chinelo, dobradiça, prego, brocha, pavio de lamparina...- Calma Papai, o homem só está querendo saber aonde tomar um café. – falou o rapazote sorrindo. – Você sabe de nada Francisco! Cala-te essa boca! – ralhou o senhor com o rapazote.

Juan agradeceu e seguiu para a venda.

- Pois não senhor? – atendeu o dono da venda.

- Eu quero um café com um pedaço de bolo!

- É pra já!

Enquanto Juan tomava o café o dono da venda puxou conversa.

- O que o senhor faz?

- Sou andarilho! – respondeu Juan.

- Ah! Mas pretende se demorar?

- Depende, trabalho com manutenção de barcos e se tiver algum serviço, fico um pouco. – disse Juan, enquanto observava o vai e vem de pessoas na feira.

- Se o senhor seguir nessa rua, vai chegar na rua da frente; os barcos ficam ancorados lá na maré. Quem sabe não tenha um servicinho para o senhor!

Após pagar o café Juan seguiu pela rua obedecendo à orientação recebida.

Chegou na rua da maré e ficou parado um pouco em frente a igreja observando o vai e vem de embarcações carregadas de sal ou retornando do mar; quando começou a cair uma neblina repentina e ele correu para a porta da igreja para proteger-se da chuva passageira e aproveitou para admirar o seu interior; quando olhou para fora, viu uma senhora segurando a mão de uma garota e apressando o passo para também procurar abrigo. Seu coração disparou; era ela, só podia ser ela; exclamou para se mesmo: Meu Deus!

Continuava bonita; passou por ele sem nota-lo; a garotinha também era bonita; aparentava ter uns 12 anos; esguia e tinha os olhos dela; e uma detalhe chamou a sua atenção: seu rosto tinha uma compleição magra e os ossos zigomáticos que se localizam logo abaixo dos olhos se destacavam em sua face, deixando-os mais profundos.

Sentaram-se em um banco da igreja e a garotinha disse: Mamãe aquele homem ali na porta fica só olhando para nós.

- A mulher olhou para trás para ver de quem se tratava e ralhou com a filha: Menina pare de ficar olhando para estranhos; é muito feio. - e voltou-se para frente.

Juan perguntou para uma senhora que também permanecia na porta.

- A senhora conhece aquela mulher ali sentada com aquela garota.

- Conheço sim! É dona L***** e aquela é sua filha. Ela é casada com o Sr. J***** ele é capitão de navio aposentado. Vivem muito bem. – respondeu a senhora que também quis lhe fazer uma pergunta, mas notou que o estranho estava com os olhos marejados de água e preferiu entrar na igreja.

Juan de la Cruz ficou parado ainda algum instante admirando a sua amada e depois ajeitou a mochila nas costas e começou a andar sem olhar para trás; alcançou a rua dos Calafates e após pedir algumas informações seguiu viagem rumo a Mossoró.

Após caminhar mais de duas horas, encontrou um caminhão carregado de sal parado na beira da estrada.

- O que houve amigo – perguntou a um homem que se debruçava sobre o motor do caminhão que estava com o capuz aberto.

- Parei o carro para dar uma olhada nos pneus e agora ele não quer mais pegar. – respondeu o homem.

Juan disse: - Deixe-me olhar! – revirou um pouco e pode perceber os polos da bateria encrustado de salitre. Com o auxílio do motorista, removeu os cabos e limpou os polos da bateria. Na primeira tentativa o carro pegou.

- Para onde o senhor vai? – perguntou Juan.

- Vou para Recife! – respondeu o motorista.

- Poderia me dar uma carona? – inquiriu Juan.

- Posso, mais o senhor para onde vai? – indagou o motorista.

- Vou para casa. – respondeu Juan.

E onde o senhor mora? Indagou ainda o motorista.

No que Juan de la Cruz respondeu:

- Moro na Rua Uruguaiana no Rio de Janeiro.

Chico Alves dMaria
Enviado por Chico Alves dMaria em 13/02/2017
Reeditado em 13/02/2017
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