A DESPEDIDA

Antes dos MUNDOS PARALELOS ® entrarem em colisão...

Ano 1972.

Martin Sarrazin acordou.

Estava atirado no chão frio de concreto. Ao redor havia edifícios conhecidos. Edifícios de Montevidéu. Sua cabeça doía como nunca. Reparou que estava vestido com o uniforme azul de choque dos pára-quedistas. Uma submetralhadora Star de 9mm estava no chão ao seu lado.

Levantou-se rapidamente e pegou sua arma. Sirenes soavam na distância. Outra vez os terroristas. Outra vez o terror solto pelas ruas da querida cidade. Outra vez a morte e a traição.

Martin estava só. Não sabia onde estava sua unidade. Estava só na cidade deserta, só, na cidade morta, a não ser pelas sirenes. E a dor de cabeça não passava. E de repente, os terroristas apareceram como fantasmas descarnados...

E o jovem soldado Martin, o pára-quedista, com medo, na rua deserta de Montevidéu, engatilhando sua arma e atirando, e as balas despedaçando os corpos já mortos, os corpos dos zumbis, que corriam sem cair, enquanto as balas arrancavam pedaços de roupa, ossos, pele e carne apodrecida...

Como num filme de câmera lenta, Martin podia ver as balas entrando, rasgando e saindo pelo outro lado daqueles corpos mortos, daquelas cabeças sem lábios, com seus horrorosos dentes em permanentes sorrisos macabros. E cada vez surgiam mais e mais, pelas esquinas, pelas portas, pelos bueiros...

E Martin apertava o gatilho e atirava, pálido de terror, e sua arma fervia, o cano estava vermelho, o cheiro de cordite queimava suas narinas... Martin gritava, enquanto o círculo de mortos vivos fechava-se ao seu redor:

–Morram! Morram malditos!

–Vem conosco – respondiam os zumbis – vem ao inferno!

–Venham me buscar! – gritava o Martin de 1972.

–Resistir é inútil – respondiam as vozes macabras – vem ao inferno!

–Comam chumbo, desgraçados! – gritou Martin.

E Martin ficou sem balas, puxou sua enorme faca de combate, cortando cabeças, braços e orelhas, defendendo-se daquelas mãos nojentas, cobertas de vermes, que arrancavam suas roupas e puxavam seus suspensórios.

–Não resistas! Resistir é inútil!

–Ainda não me pegaram, malditos! Vocês estão mortos! Estão onde sempre mereceram estar, seus malditos imundos!

E Martin abria-se caminho no meio dessa carne putrefata, cortando e decepando, pisando encima de restos de carniça que se desmanchava embaixo de suas botas. E correu, como um possuído, longe dos mortos vivos, e quando esteve a distância gritou:

–Venham de novo! Um por vez, malditos, mil vezes malditos!

E os zumbis foram desmanchando-se na rua, e Martin ficou sozinho, em pé, com sua faca na mão. E a dor na cabeça não passava.

Então Martin sentiu que caía num poço que parecia sem fundo, e gritou como um desesperado até que bateu no fundo.

Sentiu que era um fundo macio.

E Sarrazin foi abrindo os olhos devagar.

*******.

Serowe, África. Ano 1973.

–Onde estou?

–Poderia fazer uma pergunta mais original, Mein Liebe Freund?

–Coronel! Vocês já deviam ter ido embora!

–Você ainda não tinha chegado.

–Isso não é lógico. Vocês deveriam me considerar morto.

–Os helicópteros descobriram seu carro abandonado a mais de cem quilômetros daqui e não o procuraram por causa do combustível, mas calculamos que você chegaria. Cem quilômetros para um sujeito como você, não é nada.

–Como me encontraram?

–Ouvimos o barulho que fez a dois quilômetros daqui.

–Estamos em Serowe?

–Estamos no hospital da missão de Serowe.

De repente, Sarrazin lembrou de Nashuko.

–E a garota?

–No quarto ao lado.

–Ela está bem?

–Está. Chegamos no helicóptero até o local onde você fez todo aquele massacre e a encontramos protegendo seu corpo. Ela nos recebeu a bala, lutou como uma leoa, não nos deixava chegar perto de você. Mas a convencemos de que somos seus amigos.

Sarrazin suspirou aliviado. Havia valido a pena tudo aquilo. Seus camaradas não lhe haviam abandonado depois de tudo.

–Levou tiros de raspão no ombro, perna e cabeça, Mein Glücklich Freund, mas agora você parece estar bem. Pode levantar-se?

–Acho que posso. Aonde vamos?

–Vamos voltar para Hartley para nos reorganizar e receber o pagamento final.

–Terminamos aqui?

–Terminamos. Acabamos com o grosso dos rebeldes. O resto do serviço, os locais podem fazer. Agora vamos entregar o prisioneiro que já interrogamos com bons resultados, e depois vamos para Kenya, onde nos espera outro serviço.

–E a doutora?

–Será bem atendida. Era para aqui que estava vindo quando o avião foi derrubado. Ela nos contou da queda e do que você fez por ela. Ganhou uma grande fã.

–Gostaria de vê-la antes de partir.

Os olhos azuis de Schneider brilharam quando disse devagar:

–Tem certeza?

–Não entendi, coronel.

Schneider suspirou fundo, lembrando talvez de muitas mulheres amadas.

–Mein Freun, o mundo dela é outro.

Sarrazin ficou em silêncio enquanto se levantava e vestia suas roupas surradas, finalmente disse, com um nó na garganta:

–Tem razão, coronel. Mas ainda gostaria de vê-la.

–Você é quem sabe. Mas vai sofrer depois. Não diga que não avisei. Em nosso mundo não há espaço para isso.

–Um sofrimento a mais, um sofrimento a menos, coronel; não fará diferença...

–Então vá.

*******.

A Despedida.

Belos arranjos de flores enfeitavam o quarto.

Ela estava sentada no leito; paparicada pelos médicos e enfermeiras; seus amigos e colegas que até ontem achavam que ela tinha morrido no deserto. Sorria feliz e conversava animada.

Os amigos e colegas que a rodeavam estavam felizes pelo milagre do retorno e tristes pela perda dos dois pilotos, do médico e das duas enfermeiras; sem dúvida queridos colegas deles, e que tinham ficado para sempre em Kalahari.

Ele não entrou no quarto. Limitou-se a espiar vários minutos sem ser notado. Depois virou em redondo e voltou ao seu quarto, onde o esperava Schneider.

–Entendeu agora?

–Entendi, coronel.

–Os médicos não liberaram você para sair, mas já providenciei que dois camaradas se fantasiem de médicos para lhe tirar daqui.

-Clandestinamente?

–E a melhor forma de trabalhar, não acha? Somos peritos nisso.

–Somos.

Grigorenko e Wiessel entraram com uma maca de rodas, vestindo aventais brancos por cima dos uniformes.

–É este o paciente que precisa de uma lavagem anal; doutor Schneider?

–Este mesmo – respondeu o coronel.

–Vocês me pagam – disse Sarrazin rindo, enquanto subia na maca e era coberto com um lençol branco.

E Sarrazin foi levado numa ambulância ao aeroporto e embarcado no Hércules que decolou para Rhodesia.

E o mercenário lembrou da meiga doutora japonesa, que o amou por uma noite, e que ficava no hospital em Serowe, onde era seu lugar.

E as lágrimas correram pelo seu rosto curtido de sol e intempérie, sem que ele se importasse por isso.

E os mercenários sentados ao seu lado, junto com a carga de armamento sobrante, nada disseram.

Talvez todos eles tivessem lágrimas para derramar por deixar partes do seu ser e amores em lugares assim.

–Vida de cachorro! – suspirou Sarrazin com os olhos em pranto, enquanto o Hércules cobrava altura com um rugir de motores.

Os outros, não disseram nada.

Apenas acenderam seus cigarros para ocultar seus rostos com fumaça.

Muita fumaça.

*******.

Próximo: A FRANCESA

*******.

O conto A DESPEDIDA - forma parte integrante do romance inédito HISTÓRIA DE MARTIN ® – Volume I, Capítulo 9; páginas 86 a 88.

Gabriel Solís
Enviado por Gabriel Solís em 29/12/2016
Código do texto: T5866464
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