O ANIMAL E O HOMEM

Lua cheia a tangenciar a linha do horizonte, lá longe, onde finda o mar. Na praia, luz dos vaga-lumes a se ofuscar com a da lua. E homem e ilha a entrarem pela boca da noite a dentro, a se revestir do luzir singelo e mirífico, a fazer do jovem cachopo, conhecer-se a si e aos outros: à natureza e sua transcendental beleza. O vento que sopra, não é mais o mesmo de outrora. Entra-lhe em seus cabelos, sua pele e vai, lá no âmago, acariciar a alma; e ensina-lhe como ser paciente. Nem o firmamento com as suas estrelas, nem o mar com os seus peixes e mistérios o enchera de tanta jocosidade; nem a maré com seus mangues e garças, e maçaricos, e flecha-peixe, e siris, e caranguejos, e aratus, e ostras, e sururus e tudo mais. Agora, sentia na alma um saber infinito; um poder existencial, que nenhum outro mortal já sentira na terra, no céu, no mar, exceto Cristo, Este de que a sua mãe tanto lhe falara e lhe ensinara maravilhas. Naquele instante, Ossiab aprendera a sentir os seus próprios sentidos. Adquirira o dom da sensibilidade e do Amor.

Na aurora, o sol era como se fosse uma linda rosa no jardim eterno das manhãs. Ossiab descobrira que, entre sol e girassol nada se diferem, ambos giram. Ambas as rosas a exalarem o mesmo perfume. E ele a aspirar a mesma essência daquelas fragrâncias, como um coração de adolescente a se abrir para o amor, para a vida. O sentimento seu a se afinar com as coisas do mundo, da natureza que lhe rodeavam. Os sentidos aguçados a perceber, a sentir os mais imperceptíveis dos animais, invisíveis aos olhos, aos sentidos da humanidade. Sentia-se ali, O Menino do Dedo Verde a fazer desabrochar flores do nada em tudo que era canto e lugar. Quem o visse diria não estar bem do juízo. Estava a conversar, a matutar sozinho como um ensimesmado. Em todo lugar existia um ser inanimado, um ser animado a querer viver. A ser compreendido. Seres antes pisoteados, constantemente, por pés humanos, mormente, os seus. O dia se fora juntamente à noite e, mais uma vez, a Rosa. Ossiab a Deus era a quem depositava o sucesso seu. Por isso, agradecia.

De súbito percebe algo roçar, levemente, a lateral da canoa. Bota a cabeça de fora, mas não ver nada. De repente, o barulho insiste com mais intensidade no assento, atrás. Sente molhar as costas. Algum peixe, um golfinho qualquer, a querer brincar talvez, imagina. Comumente, eles aparecem naquele litoral. Mas não, surpreendido, dá de cara com um cavalo-marinho; um enorme bicho que parecia um jaguar. De pescoço estirado dentro da canoa a se movimentar de um lado para outro, alegremente, como se quisesse dizer algo. Estranhara a agitação do animal. E ao olhar, bem dentro dos seus olhos, percebe lágrimas. Via-o triste, a necessitar de ajuda. A alegria que percebera se fizera em tristeza de cortar coração; quis saber, entender o porquê de estar a sofrer. O animal gesticula. Emite um barulho. Algo tipo linguagem que nunca se vira antes, mas compreensível. Sem esforço, logo compreende o que dissera. O cavalo-marinho que andava insatisfeito, se cansara da vida do mar. Queria se transformar num cavalo terrestre. Queria conhecer campos, vales; queria a existência terrena. “Então, se é por isso que choras”, disse Ossiab, “eu poderei ajudá-lo”. O cavalo-marinho satisfeito e feliz insiste em perguntar, como que ele poderia lhe ajudar como retribuição, a sua gentileza. Ossiab, diz ir à casa do Sábio da Camboa, em Pitangui. Mas o animal se preocupara mais ainda. Sabia que ele jamais chegaria à casa do Mestre sem a sua ajuda. Teria que transpor o canal, um grande e submerso canal, num intransponível manguezal.

Ossiab, não se dera conta do que estava para acontecer, tinha à sua frente um obstáculo. Não esperava por aquilo. Se sentira frustrado, não mais continuaria a viagem. Seu coração arrebatara-se duma melancolia que jamais sentira antes em toda a sua vida. Hesitara. Pela primeira vez titubeara de vera. Sentira muito medo. Era esse o lugar que ele tanto ouvira da boca dos pescadores. Dali eles não passavam. Naquelas profundezas, se escondiam os grandes perigos: tubarões gigantes, serpentes marinhas, monstros assustadores e horripilantes espreitavam. E intrusos ou transeuntes serviam de alimentos para eles facilmente. O que ouvira como estória de pescadores agora era real. História com “H” mesmo e não com “E”, como as de mentirinhas. Tinha sim, todo grau de veracidade.

De lenda era o seu passado. O momento não lhe sonegava nada, estava tudo ali, bem à sua frente. Estava assustado. O cavalo-marinho, se dispusera a lhe ajudar transpor o canal, submerso pelo mangue, onde não se via fim. Ossiab não acreditara no que ouvira. Porém, aliviara a sua dor. Compreendera a sapiência adquirida. Os efeitos extraordinariamente fantástico, capazes de transcenderem à sua própria existência humana. Sim, exatamente isso. Não conseguia acreditar, como que as coisas lhe aconteciam. Sempre aparecia algo, alguma coisa, alguém para lhe ajudar nas horas mais difíceis. Ficara realmente pasmado, quando o cavalo-marinho se ofereceu para lhe ajudar naquela quão difícil missão. Um caminho perigoso, onde ele estaria a arriscar a sua própria vida. Às vezes, via em tudo aquilo, como a um sonho, um maravilhoso divagar de criança. A ponto de duvidar de si mesmo. Beliscava-se para ver se estava acordado de vera.

O cavalo-marinho, imponente, aproximara-se da canoa e fez subir em seu dorso, o amigo. Estava disposto a levá-lo para o outro lado do manguezal. Com firmeza, olhos fechados, respiração presa, ficara Ossiab. Mergulharia as profundidades negras daquele abissal. E dentro de alguns minutos, homem e animal estavam numa nova região. Um autêntico paraíso terreal. Abertos os olhos do Menino de Maré se sentiu como se despertasse de mais um profundo sonho. Mas tudo tinha a ver com sonho mesmo, principalmente aquele lugar: a luz a irradiar uma maravilhosa floresta, quase que encantada; pássaros, muitos passarinhos a cantarem; parecia que todos os animais da terra estavam ali para festejar a sua chegada; inclusive cavalos, que pareciam alados, a correr com tanta leveza; foram eles que encantaram o cavalo-marinho, por isso, ele queria ser um deles. Não dava para se desprender do encantamento da beleza daquele eldorado. Só os livros de fada poderiam expressar tanta originalidade; mas o que tinha ante seus olhos era real, não era sonho, nem ficção não. Pois, o Menino de Maré acabava de chegar em Pitangui, nas terras do Mestre Essiib. Dali, ele só teria que caminhar um pouquinho mais até a Camboa, morada do Mestre. E quatro meses se completara, que Ossiab canoava por águas estranhas daquele mar infindo.

Do livro: O MENINO DE MARÉ de M. C. Garcia publicado em 24 de junho de 2012.