A VIAGEM DE OSSIAB

A viagem duraria, em média, quatro meses. Era o que o menino de maré ouvira dizer pelos mais velhos. Isto é, se a maré e o tempo o ajudassem. A maré estava como ele gostava. Cheia, alta, grande como a lua que tinha tudo a ver com aquele seu gostar - era um eterno admirador de Lucina, um romântico, um poeta. Isso, já era um bom sinal para o sucesso da sua viagem. Dias antes arrumara a canoa e colocara bucha de coco nas frechas para não vazar; pintara de piche o fundo e as laterais e de azul claro, o restante; já os bancos e bordos foram pintados de branco. Tudo estava em perfeita harmonia: o dia e a sua alegria em extasia. Encheu a canoa de apetrechos para a viagem; a canoa, presa à corrente e cadeado no tronco de mangue, desancorava para um mundo desconhecido. Agora, homem e barco rumam para o grande destino: a casa do mestre Essiib, ambos a deslizarem vala a baixo e, em poucos minutos, encontram-se com o Rio Grande, é o Potengi, que flui calmo, lento e eterno em busca do mar, em que o homem o particularizou de praia de Redinha. Dois remos e vela auxiliam o pequeno navegador. Tudo que ele mesmo improvisara para a viagem; a vela era a sua grande auxiliadora, quando cansava de remar; ainda no primeiro dia, percebeu que não iria ser fácil ter que enfrentar aquele mar. Imenso e indomável mar, que o fazia pequeno, tão pequeno do tamanho de nada. Começava a enfrentar as fortes ondas das praias e a sua incomensurável violência.

O crepúsculo da tarde, no horizonte, denunciava o quanto tinha navegado. Ou seja, o bastante para se ter a esperança do fim. Entrava, agora, na praia de Genipabu, uma extraordinária e beleza de praia, margeada por dunas e coqueiros que os nossos olhos não acreditam e até chegam a duvidar enfeitiçados de tanto encanto. A noite caía, mas ainda não era hora de parar. A canoa continuou a levitar na calmaria das águas noturnas. O mar abrandara. Sob o esplendor de Lucina o espírito de o Menino de Maré se enchia de paz, da mais infinita paz que nunca sentira antes; quão gratificante era tudo aquilo que deixou-se envolver pela brisa e dormiu. Dormiu confiante como criança embalada numa rede pelas mãos materna. Barco e berço, canoa e rede; homem e criança, homem e homem. Não, não se podia discernir um do outro: se Ossiab homem, se ele criança; o resultado é que ele dormira demais e acordara assustado. O sol forte da manhã, já se encontrava alto, e encandeava os seus olhos. Acordou desesperado, pois estava à deriva, se sentiu perdido no meio do mar? Aí, lembrou-se que tivera um belíssimo sonho, alguém o guiava e a sua canoa rumava quase sozinha, porém ele não conseguia ver o rosto do cicerone marítimo, por mais que tentasse identificar, aquele guia misterioso, não o conseguia. E tudo se dava como se ele estivesse acordado, mas mesmo assim terminou dormindo. Entre toda aquela confusão normal de quem acorda assustado, percebeu que estava próximo da terra; aí, viu casas de pescadores, um imenso coqueiral e alegrara-se até a alma, mas o prazer que teve se deu por via contrária, ao invés de contemplar o lugar e descansar, foi-se embora e continuou a singrar mar a dentro. E, assim, canoou e canoou o máximo que pôde. E navegou e canoou por muitos e muitos dias, até completar um mês de viagem.

O mar parecia lhe fortalecer mais e mais os ânimos, a vida; a cada vez que canoava mais queria canoar pelo mar, não se cansava nunca se cansava. Parecia que aquele contato direto com o mar fazia-lhe sentir-se seguro e rejuvenescido. Era uma energia transcendental, que emanava da imensidão azul, e os mistérios ocultos das noites eram todos desvendados, pela força do seu coração que só desejava chegar ao destino. Dias e noites se passavam calmo e lento como a vida às vezes é, e não é. Ossiab se envolvera profundamente mesmo, do fundo da sua alma com aquela viagem, que sequer se lembrara de comer, não tocara na comida, porque não sentira fome a nenhum momento e não era fastio não. Alimentava-se da esperança de chegar, da contemplação, da admiração e por venerar as coisas belas da natureza marítima. Tinha o firmamento inteiro a todo seu dispor a todo instante e momento que quisesse ou não; a lua, as estrelas a todo instante a iluminar o seu caminho, o seu destino. Estrelas no céu, estrelas no mar. Luzes em tudo que era lugar. Luzes realçadas até nas águas do mar. Tudo que emanava da terra, do céu, do mar era como se fosse a essência de seus alimentos. O espírito a transbordar de felicidade, a se arrebatar de amor, a rejubilar-se mais e mais. Sem fastio, jejuava e meditava como um eremita na solidão de seu barco. Sem saber e sabendo que, tudo isso, o fortalecia e lhe deixava seguro e confiante para continuar, sem hesitação, a missão que ele próprio escolhera?

Do livro: O MENINO DE MARÉ de M. C. Garcia, ainda no prelo, breve a ser publicado, aguardem!