Vidente

Fazia algum tempo que não via minha amiga Lalá. A bem da verdade, tirando a época em que trabalhamos juntos como monitores na escola onde eu havia estudado no ensino médio, foram poucas as vezes em que nos encontramos. Apesar disso, sempre que nos víamos, fazíamos daqueles poucos instantes juntos um evento. Até hoje funciona assim. Creio que isso aconteça porque, de alguma forma, há pessoas a nossa volta que, mesmo com a distância, por algum motivo, permanecem conectadas a nós de uma forma tão íntima capaz de perceber a menor das agitações na nossa vida, o suficiente para surgir aparentemente do nada para um papo despretensioso, que, no fim, nunca se confirma como mera ocasião. Com a Lalá sempre foi assim e o fato de sermos bastante diferentes só torna tudo ainda mais significativo, porque me mantenho aprendendo a cada encontro.

O ano devia ser 2017 ou 2018, não lembro tão bem... Lalá tinha acabado de se mudar para uma casinha singela no fundo de um lote no Cruzeiro Velho e havia me convidado para conhecer seu novo cantinho. Lembro de me sentir especial, éramos dois jovens adultos tentando cumprir ou descumprir - reafirmando nossa independência a cada mínima conquista - o script da adultez emergente da capital do país. Éramos dois professores de línguas se perdendo pouco a pouco em diálogos profundamente inconsistentes, sem rumo, mas jamais descomprometidos. Por isso, não podia perder a oportunidade de vê-la, abraçá-la, agradecer-lhe pelo convite... mesmo porque não costumo ser a pessoa convidada para um jantar e, apesar da boa educação com que habitualmente me comporto, prefiro me manter reservado a momentos como os que estariam por vir.

Naquele dia, a lua estava cheia. A caminho do Cruzeiro, não soube dizer se ela sorria ou me julgava lá do alto, através do para-brisas da antiga EcoSport Vermelha. O sereno sob a superfície metálica do carro criava uma camada condensada do orvalho urbano, como quem anuncia a noite fria que se aproximava devagar, tal qual eu dentro da Eco seguindo rumo ao horizonte que se desenhava no cruzamento da Epia com o céu imenso e escuro do crepúsculo brasiliense. Por mais estranho que soe o que irei dizer, de alguma maneira, eu sabia que um dia escreveria sobre aquela sensação, aquele dia e tudo o que veio a partir dele. Pois bem... eis-nos aqui, eu e este relato. O que eu não sabia naquela época era que aquele convite ao momento, à experiência, depois daquele encontro, nunca mais cessaria. Também me faltariam palavras e repertório para reconhecer que tudo aquilo era bem maior do que o meu desejo de acelerar como quem testa o potencial da máquina, da força do motor até a resistência do metal, das ferragens, contra um paredão de concreto gelado, umedecido pela noite como num calafrio, um presságio nada estranho ao momento ou a mim; ao menos não naqueles dias.

O encontro com minha antiga amiga correu bem o suficiente para constar em um registro como este. Lalá, apesar da modéstia, sempre se comportou como uma boa anfitriã, ao seu modo, é claro! Mas isso não diminui em nada o carinho que sempre recebi pelas suas palavras e gestos às vezes visceralmente aconchegantes, calorosos e imprevisíveis. Diversas vezes, senti que aquele jeito peculiar nada mais era do que seu jeitinho de dizer que se importa, mas que, por isso mesmo, não pode deixar de mencionar certos desconfortos. Em muitas ocasiões, sem saber, ela esteve certa, tinha as palavras necessárias para a circunstância de uma maneira quase mística - ao menos era assim que eu entendia.

Nada acontece ao acaso e esse é um clichê dos romances que se propõem a dizer algo que ainda não dão conta. Em todo caso, esta história não diz respeito à mística do destino, nada disso! Mesmo porque não me sentiria à vontade ao desconsiderar os esforços que ambos fizemos diversas vezes para estarmos presentes um na vida do outro, ainda que distantes. O fato é que, apesar das lentes diferentes, eu e Lalá olhávamos para o mesmo horizonte absurdo daquela noite. De um lado vinha ela, com sua energia contagiante, espontânea, despojada, do outro eu ia me soltando, acomodando-me ao sofá para ouvir as novidades dos últimos meses e anos.

— Ando me sentindo diferente, amigo... acho que sou bruxa, tô até estudando mais essas coisas. Virei taróloga... (disse levantando os olhos, ainda com a cabeça baixa, passando o café). Inclusive, quer saber o que as cartas têm a dizer sobre você?

Olha... eu não posso mentir, dizer que estava super crente no poder do tarot e de tudo o que viria a partir dele, mas costumo ser contagiado pela natureza da energia da minha amiga. Então, apesar de um certo ceticismo natural a alguém que não nutria grandes esperanças na vida, decidi me deixar levar pelo entusiasmo curioso que me tomava na presença da mais nova taróloga do Cruzeiro Velho. Chega a ser poético contar isso dessa forma hoje, até porque seria exigir demais que toda a granularidade de detalhes se mantivesse perfeitamente intacta depois de tantos anos. Por isso, sou levado a acreditar que esses enxertos que a alma promove diante da angústia gerada pelas mais diversas lacunas deixadas pelo tempo são um tipo bastante peculiar de presente que o artista recebe ao fazer o esforço instável de materializar a imprecisão dessas silhuetas que pairam na memória de quem simplesmente se deixa afetar.

Hoje entendo que minha amiga foi um canal fundamental àquele momento. Por meio dela, as cartas diziam que eu me despediria do passado para, enfim, começar a verdadeira viagem, aquela para o qual eu havia sido preparado até aquele minuto, sob aquele sofá, longe de casa e da sensação de segurança e proteção que me perseguia como a única forma de permanecer no mundo. Não era, obviamente não era. Segundo as energias que regiam aquele encontro aparentemente despretensioso, era chegada a hora de adentrar a embarcação dentro da qual eu navegaria por um longo período até aportar em um lugar totalmente diferente onde eu conheceria o mago e ele me guiaria e prepararia para a verdadeira missão da qual eu já nascera encarregado.

Por mais que a mente teimasse no julgamento superficial de um ceticismo medroso, algo lá no fundo queria poder acreditar e, provavelmente, precisava mesmo crer que, de fato, aquilo tudo não passaria apenas um delírio de dois adultos desesperados naquela familiar ânsia por dar certo, por fazer algo significativo, para além do plano de vida padrão da classe média tipicamente frustrada e envaidecida que tomou os edifícios amontoados de Águas Claras. Claramente, eu e Lalá tínhamos até um certo pavor de nos vermos desfilando pelas faixas de pedestres, entre os condomínios apertados, com um shih-tzu engravatado na coleira, comentando as atualizações do último reality show "inovador" no streaming brasileiro.

Entre os destroços do meu TITANIC, aquela previsão soava como a profecia necessária não só à permanência dos sonhos, mas do sonhador também. Era meu pedaço de madeira boiando à deriva, em meio ao nada; e vinha embalado com certa doçura pelas palavras de minha amiga atenciosa. Já pela madrugada, ao me deixar no portão para que eu fosse embora, Lalá reforçou a mensagem que tonificara aqueles momentos que passamos juntos:

— Amigo, só não esquece que você é muito especial, ainda vai fazer coisas grandes e eu vou estar aqui para te assistir e dizer pra todo mundo "já bati muito papo-cabeça com ele, tomando café e comendo biscoito de sal com manteiga".

Entrei na Eco vermelha e seguimos viagem até Samambaia. De volta, em casa, não consegui dormir. Queria que o ambiente a minha volta me desse qualquer sinal de que não estava me perdendo em um desejo infantil de que alguma coisa fosse real sem ser necessariamente dolorosa. Chorei na descrença oscilante de um adulto sendo convocado pelo despertador a mais um dia de trabalho. Os dias seguiram se arrastando, se esquivando da minha inabilidade em aceitar a rotina como algo necessário ao projeto de vida... "Projeto de vida", projeto de vida... projeto! Acabei jogando o celular na parede depois de ver mais um anúncio de curso para "mudar de vez a minha vida". Nada daquilo fazia sentido e, no meio daquele oceano de propagandas, meu barquinho naufragava, tornando cada dia mais distante o vislumbre daquela embarcação redentora.

Em meio a vários esforços para me manter acreditando não em algo, mas na possibilidade, num daqueles encontros com o desespero por encontrar algum sentido, apenas me deixei levar. Como não fazia há alguns bons meses, sentei-me diante do notebook e comecei a escrever "O Beco", texto que entraria para meu primeiro ensaio filosófico como escritor. Ao inserir O Beco entre os registros que comporiam o livro 50 dias., a mensagem ficava ainda mais clara: "era um jardim". A tela do notebook me convocava a um mergulho para resgatar algumas peças do quebra-cabeças que tinha se tornado minha experiência com a arte. No meio do caos, no olho do furacão, na garganta do diabo, aquela madrugada despejando palavras numa tela, ora gemendo, ora filosofando sozinho, ora apenas digitando, serviu para me conectar ao jardim que só existia dentro de mim, onde eu sempre cultivei flores que até então mantinha ocultas na tentativa de guardá-las da insensibilidade alheia. Estava sendo plantada a semente do que, mais tarde, viria a se tornar A Casa da Rosa, meu último livro publicado - até o momento.

Aquela madrugada se inseria gradualmente na saga que havia se iniciado naquele encontro com a Lalá e vinha confirmar a relação ambivalente que eu manteria dali em diante com as madrugadas seguintes. A partir daquele momento, bastou sentar-me na frente do notebook, atento ao silêncio que só surge quando os protocolos cessam, para que, dentro de algumas horas, um texto a exemplo deste nascesse como numa psicografia criada a partir da justaposição de cores, memórias e sensações projetadas na tela da alma. De repente, uma epifania se tornava uma página, duas, três, dez, cinquenta... e os arquivos passaram a se acumular em pastas com títulos quase premonitivos sem necessariamente chegarem a alguma conclusão. Daí fui me tornando um daqueles escritores anônimos com vários livros inacabados, vários romances que, por não terem sido finalizados em poucas horas, acabaram perdendo o sentido no dia seguinte e estão lá, no limbo das obras potencialmente promissoras até agora.

Apesar dos textos abandonados, a movimentação gerada por aquelas madrugadas inquietas criou uma dinâmica curiosa. À medida que os textos me chegavam, mais pensamentos eles movimentavam e, consequentemente, mais palavras eram necessárias para significar tudo o que acontecia à minha volta. De alguma forma, embora não fosse, ainda, a despedida da tristeza profunda que já me acompanhava há anos, os momentos se alternavam entre picos de euforia (quando batiam as epifanias) e aquela familiar descrença quanto a possibilidade de um futuro diferente do que vinha se desenhando há uma vida inteira. Cheguei a tomar medicações diárias para lidar com o "transtorno bipolar", que me permitia ser criativo ao custo de um julgamento extremamente pesado sobre o motivo de estar passando madrugadas tão produtivamente produzindo algo assim tão aparentemente improdutivo. Na boa, de que adiantaria tanta entrega para acabar numa gaveta? - era como eu me massacrava depois de horas na companhia de Belchior, Elis, Cazuza, Renato, Camelo, Amarante... Era, no mínimo irônico, mas real como só cada momento pode ser.

Quando a censura batia antes das primeiras palavras preencherem a tela do editor de textos, eu ficava ali, na frente daquela paisagem digital branca e vazia por horas, em silêncio sentindo a superfície do rosto ser hidratada subitamente por um frescor quente, que logo secava, dando lugar aos calafrios, à taquicardia, que vinha acompanhada de uma dificuldade conhecida de respirar para além do ar enclausurado naquele quarto recém-reformado. As páginas seguiam vazias enquanto a mente permanecia inundada por uma série de coisas que antes eu contaria apenas para o papel, agora teria de esperar até a próxima sessão de terapia. Com isso, passava os dias cada vez mais silencioso e silenciado pelo medo de ser descoberto por conta da impossibilidade de deixar a barragem de pensamentos e sensações simplesmente transbordar.

Não gostava de quem eu havia me tornado, mas paradoxalmente me maravilhava cada vez mais com o que vinha de dentro de mim. Apesar disso, preferia o anonimato para que não fosse julgado, cruelmente criticado ou tratado com indiferença por ter deixado escapar algo assim tão particular. Permanecia dentro da minha jangada, do meu barquinho, com um medo absurdo de encontrar e ter de adentrar a tal embarcação que mudaria tudo. Mas mudaria mesmo ou apenas daria continuidade? No começo a ideia de uma viagem rumo ao desconhecido para encontrar um mentor me soava algo tão inspirador, agora me colocava em contato com meu tesouro mais precioso, que eu provavelmente teria de dividir com outras pessoas em algum momento. Honestamente, por mais que eu tivesse consciência da força da profecia contida nas palavras de Lalá enquanto nos despedíamos naquela madrugada, teimava em me curvar ao tal destino para provar que, por pior que fossem as consequências, a escolha ainda seria minha; nada nem ninguém poderia tirar de mim o direito de transgredir.

Acho que me relacionava mais com o medo de ser descoberto do que com as mulheres com quem escolhia passar meus dias e noites; elas naturalmente se empenhavam em me conhecer, mas nem sempre em me "desvendar" - como eu imaginava. E assim o tempo ia se arrastando em um misto intenso de ausências e presenças, de encontros e desencontros, pelos quais eu não me responsabilizava, o que acabava convertendo toda essa dinâmica em um constante sentimento de culpa que me corroía devagar sempre que meus olhos cruzavam com aqueles que me questionavam no espelho. Passei a evitar qualquer superfície reluzente mais polida... e tudo para descreditar a vidente. E se a previsão não existisse? E se aquela noite simplesmente não tivesse acontecido? Mudaria alguma coisa ou eu estaria mesmo predestinado a esse encontro com um futuro que praticamente apontava para a "jornada do herói"? Patético, né?

Naquela noite com a Lalá, conversamos sobre meu desejo de também sair de casa para ir morar sozinho em algum lugar mais perto do centro. Entretanto, tratamos como algo mais distante, afinal eu tinha acabado de ser demitido do meu antigo emprego em uma escola famosa da capital depois de quase cinco anos de prestação de serviço. Acontece que, de uns tempos pra cá, minhas oscilações de humor e motivação haviam se tornado ainda mais agudas. Lembro com riqueza de detalhes das palavras da minha chefe em nossa despedida.

— Te vi chegar por aquela porta como um menino e hoje me despeço não sei se de um adulto ainda... você tem muito talento, garoto. Só precisa tentar ser mais estável. Tenho certeza de que a gente vai se encontrar, como colegas de trabalho, por aí.

Seria mais uma profecia ou premonição? Àquela altura, seria mais uma frustração para a conta. Usei a rescisão de contrato e o restante dos meus direitos trabalhistas, conquistados com muito suor, sangue e lágrimas, ao longo de pelo menos três anos instáveis para investir na minha banda. A K-Libre lançaria seu primeiro álbum em junho de 2017 e o ano anterior tinha sido razoavelmente interessante àqueles cinco jovens da periferia do DF. Por outro lado, a gente já vinha num processo de reestruturação que não me animava tanto. Era como se pudesse sentir que, de fato, aquela viagem precisaria ser solitária - contra minha vontade. Quanto mais eu buscava unir os integrantes e desenvolver projetos, mais a vida parecia olhar para mim com aquele olhar de julgamento que eu encontrava no espelho enquanto repetia "até quando?" bem baixinho, como quem tenta conter o incontrolável.

O sonho vinha se desgastando há um bom tempo. Hoje consigo entender que K-Libre (knights libres – “cavaleiros livres”) foi um devaneio solitário de anos que eu compartilhei com alguns colegas talentosos musicalmente de uma forma menos profunda do que o projeto merecia. No entanto, creio que seria demais revelar já de cara a natureza mórbida da suposta aventura aos meus companheiros ambiciosos por alcançar seu lugar ao sol nos outdoors digitais das redes sociais. Sinceramente, por mim, a gente nem apareceria, porque meu compromisso nunca foi com o show, com as pessoas em si, comigo ou com as mulheres que se alternavam na companhia de um pretenso astro decadente do rock. Meu compromisso não era sequer com o rock. Estava disposto a sacrificar tudo isso em prol do que era dito por meio de mim, porque, lá no fundo, o que me incomodava era saber que eu não passava de um canal.

Quantas foram as vezes em que forcei umas palavras num poema e acabei triturando puto de raiva a folha de um caderno de bolso de papelão daqueles que a gente compra em qualquer armarinho de esquina? Difícil admitir que nossa força não vem da gente e reconhecer que não temos como ter consciência do que nos rege nem de como isso acontece. Não tinha como negar que o projeto uma hora iria acabar, eu só queria que as pessoas reconhecessem a mensagem por trás dos acordes tensos e do contraste entre as distorções saturadas da guitarra e do baixo com a suavidade dramática do violino. Cheguei a não duvidar do fato de que a K-Libre era a tal embarcação, mas acabei fazendo dela um bote salva-vidas um tanto egoísta e, por isso, entendo os motivos pelos quais os outros tripulantes se atiraram ao mar antes de ganharmos o horizonte no meio do oceano brasiliense.

Foi somente em uma entrevista ao vivo para nossos queridos amigos da Web Zone, uma rádio que havia nos apadrinhado, que a verdade veio à tona. Naquele dia, o combinado era que pelo menos quatro de nós estaríamos no estúdio para um bate-papo descontraído para a divulgação do lançamento do nosso primeiro álbum. Creio que a audiência esperava uma transmissão bombástica daquelas dignas de revelações instigantes do tipo que encapava as edições mensais da Capricho. Apesar das camisetas com a logo da banda e um visual tipicamente alternativo-rock, eu e meu companheiro de composição e produção Arthur não cumpriríamos, mais uma vez, o protocolo nem sustentaríamos por tanto tempo as expectativas que projetavam em nós e na nossa carreira; começando pelo fato de que apenas metade dos integrantes pretendidos se fez presente.

Entre as brincadeiras típicas do nosso anfitrião e várias risadas de sua companheira de transmissão, acabamos entrando nos assuntos mais intrigantes das composições. Os dois já nos acompanhavam há bastante tempo, foram grandes responsáveis pelas oportunidades que alcançamos ao longo dos anos que estivemos na estrada e, por isso, naturalmente estavam inquietos quanto à estética do nosso álbum. Não era para menos, afinal o que haveria levado um jovem compositor que mal sabia tocar seu instrumento de trabalho a formar uma banda com seis integrantes, misturando uma sonoridade agressiva com a suavidade de um violino solando em praticamente todas as músicas ao longo de um álbum com 14 faixas que se propõe a contar a história de um soldado brasileiro na Segunda Guerra, em uma estética de teatro musical, para a juventude de Brasília, tomada pelas delícias do pop, sertanejo, funk e tecno-brega nas redes sociais? Ou eu era um idealista insanamente alheio à realidade ou um visionário vintage comprometido apenas com a arte. Na verdade, não era nenhum nem outro. Foi o que ficou mais claro mais para o meio da entrevista:

— Então, Hudson, nosso querido compositor de dilemas profundos... conta para a gente... eu posso estar enganado, mas parece que esse álbum tem algum segredo, alguma mensagem por trás, né?

Não vou me alongar muito na descrição daquele momento porque não é o foco deste relato, mas imagine, você aí do outro lado, eu e meu pavor por ser desvendado sentados ali em frente às câmeras, numa transmissão ao vivo, ao lado do meu principal companheiro de caminhada, talvez a única pessoa com quem eu já tinha dividido mais profundamente as angústias que narrei até aqui... diante da grande oportunidade de exorcizar antigos demônios... o que você teria feito? Teria mantido segredo? Guardaria para si mais uma vez a frustração de apenas não conseguir se desvincular de tudo o que simplesmente havia emergido a partir de você mesmo nos últimos anos? Na minha cabeça, tudo o que eu tinha de propriamente meu era aquele álbum e uma coletânea de textos feitos para mim mesmo dentro de um caderno de brochura verde que eu usava como suporte para os encontros inusitados com a realidade pós-terapia. Entende? Eu só existia nos meus textos e, naquele momento, tudo o que eu consegui fazer foi revelar isso do meu jeito àquelas pessoas que pareciam realmente interessadas nesse universo particular confuso e incessantemente inquieto. Entre o transbordar das lágrimas, fiz a confissão:

— Luís, o grande “segredo” por trás das metáforas de guerra é que este é um álbum sobre suicídio...

— Como assim?! Você pode nos explicar melhor?

Pelo tom da condução da entrevista, percebi que meus interlocutores ainda não tinham entendido exatamente do que eu estava falando. Em conversas de bastidores momentos depois, descobri que, a princípio, a Tati e o Luís tinham entendido que as composições tinham como plano de fundo a temática do suicídio porque esse era um assunto que estava emergindo a partir das redes sociais e eu considerava que seria importante falar a respeito, mas de forma poética, porque, afinal, eu era um escritor antes de me considerar músico e vocalista de uma banda.

—Bom... este álbum era para ser uma despedida, um testamento sem testemunhas, como está escrito no título da última faixa e, na verdade, não sei até que ponto ele não é... mas sigo me esforçando para que não seja, entende? Inclusive, queria aproveitar o momento para agradecer a esse meu companheiro, a quem posso chamar de melhor amigo, que foi um dos grandes responsáveis por eu estar aqui hoje. (Virei-me para o lado e continuei) Amigo, você não sabe o quanto foi importante, não tem ideia de como foi significativo compor esse álbum contigo... todas aquelas manhãs, tardes e noites ao longo de mais de um ano abrindo para você minha vida para que você, como produtor, conseguisse imprimir nas músicas exatamente o sentimento que eu desejava passar com elas. Nunca vou me esquecer daquele home studio na Santa Maria, num prédio que mais parecia uma pensão, uma república com gente entrando e saindo o tempo todo... o apartamento 202, as conversas sobre Queen, Muse, Panic e outras bandas que nos inspiraram, regadas a Lalita e salgadinho de 40 centavos, que era o que a gente conseguia pagar... eu peguei tudo o que tinha depois de economizar por meses trabalhando com algo que me desmotivava e coloquei nas suas mãos um plano de adolescente e você me ajudou a tornar o sonho daquele menino que cantava em frente ao espelho para sua plateia imaginária essa realidade, esse momento... Por tudo isso, obrigado, amigo.

Mr. Lewis, Tati e algumas outras pessoas do outro lado da tela se emocionaram também, principalmente por reconhecerem, minimamente, o valor daquelas palavras. Creio que aquele momento serviu como a peça do quebra-cabeças que faltava àqueles que não conseguiam compreender toda aquela introspecção e reserva. Eu era o frontliner de uma banda de rock que começava a ganhar destaque e não conseguia me comportar assim tão espontaneamente nem mesmo no palco; às vezes entrava pela porta dos fundos no evento, fazia meus aquecimentos com os outros meninos e saía do palco já com sintomas de uma crise de ansiedade, sendo prontamente amparado pelo meu pai, que já chegava com um comprimido que ele sempre guardava na carteira para ocasiões como essa. Cena de drama cinematográfico, né? Pois é... a vida só não era um filme porque no outro dia tudo começava de novo. Como diz um grande amigo meu “não tem recreio, parceiro”.

Acho que o que eu queria era umas férias bem longas de mim mesmo, ou pelo menos da minha versão não literária; da literária eu gostava, achava um barato... ela me fazia rir muito sozinho. Mas eu tinha aprendido já quando criança que os adultos riem em público de quem ri sozinho, eles gargalham ferozmente entre si de quem, alheio a tudo e todos, num lapso de autoidentificação ri de si mesmo. Por isso eu fui aprendendo a mostrar os dentes de maneira bastante controlada e conveniente. Tornei-me assim uma ótima companhia. Minhas companhias efêmeras diziam adorar a forma como eu as fazia sorrir. Numa dessas, de volta ao meu quarto, em frente ao notebook, entregue a mais uma madrugada de simulações mentais, escrevi “O bobo da noite”, texto que também entrou, mais tarde, para o 50 dias.; nele a mensagem ficava bastante clara: quem faz o palhaço sorrir?

Quem prevê o futuro do vidente? É curioso, sabe... com o tempo tive que encarar a verdade cruel da qual eu simplesmente já não podia mais me esquivar. Talvez o que a Lalá disse naquele dia já estivesse estampado no meu rosto há muuuuito tempo, como uma daquelas coisas gritantes que qualquer um enxerga, mas a gente, por algum motivo, teima em não aceitar. Se fosse mesmo por esse caminho, aquele futuro não dependeria tanto assim de mim. Eu temia me abandonar, quando, na verdade, só precisava me desapegar da necessidade do controle desse abandono. Como já havia escrito em A vida é sozinha,

A madrugada é o recanto das almas

E a vida é muito mais sozinha

Por entre becos e terras áridas

Hoje sua vez, ontem foi a minha

De um modo esquisito, eu sentia que aquele futuro que me espreitava estava, enfim, começando a caminhar progressivamente em minha direção. A banda iria acabar, era inevitável. Apesar de ter reformado boa parte da casa junto com meu pai, o momento da minha partida já estava se anunciando e, em breve, o passarinho da música Peregrino precisaria alçar voo, ainda que lá no alto reconhecesse a fragilidade de suas asas de cera diante do impetuoso e vigilante sol. Quem sabe não seria exatamente dessa queda que viria o encontro tão almejado com o mar...

Se a vida é um labirinto

Faça do sonho quase extinto

Asas de cera para voar

Seremos Ícaro e o mar

Juro que não era para soar assim tão nostálgico, mas é que à medida que vou escrevendo, a alma vai preenchendo as lacunas e eu não posso ser negligente ao ponto de não registrar aqui essas convergências inusitadas que ressignificam um passado recheado de dúvidas, de momentos pelos quais eu passei apenas porque não havia a possibilidade de não atravessar as pontes diante da pressão de uma avalanche imediatamente atrás de mim. A cada travessia, uma ponte quebrada, uma paixão desgastada, uma frustração corrosiva, desbotada e amarga. Tão previsível que soava como uma profecia autorrealizadora. Só eu podia ser o vidente da minha própria história... o que era uma grande estupidez.

Meus esforços já não estavam mais em ser o melhor, ser o mais promissor... acho que eu só queria ser possível. Por conta disso, os disfarces passaram a não se sustentar, as metáforas foram se diluindo, os discursos se desintegrando, as relações evaporando abaixo do sol vigilante. Com isso, os shows ficaram cada vez mais raros, os ensaios cada vez mais sem sentido, as amizades desconfortáveis, as composições menos doloridas, os textos mais presentes e eu... bem... eu acho que fui me conectando, me encaixando na minha solidariedade poética das madrugadas escrevendo textos para interlocutores que ainda chegariam ou que, em breve, ganhariam mais relevância. Assim, fiz dos meus organogramas textuais cartas que guardei por anos apenas para mim mesmo. Hoje elas estão reunidas no A Casa da Rosa, mas àquela época funcionavam como um modo muito particular de manifestar o que eu sentia por alguém sem que isso se tornasse potencialmente destrutivo por conta da minha ânsia em ter meu universo interior reconhecido, mas sem excessos, sem me sentir violentado para isso.

Não era sobre mim, nunca foi. Ainda assim, eu queria poder ser amado mantendo uma distância segura. Há! Há! Chega a ser hilária essa incoerência fundamental, né? Mas é isso mesmo e eu só estou escrevendo isso aqui porque sei que não acontece só comigo. Talvez eu apenas seja um dos que consegue colocar em palavras e que, além disso, aprendeu a fazer um registro cuidadoso não só do que vive, mas do que sente... no entanto, o mais importante é que, não fosse por todo esse trajeto que narrei até aqui, não adiantaria muito saber escrever sobre essas coisas se a vida não tivesse me confrontado com a necessidade de me expor para que outras pessoas se reconheçam diante de sentimentos e pensamentos que elas mesmas têm, mas não reconhecem como seus ou não conseguiriam organizar de uma maneira sensível e até técnica.

Quando a conheci, já estava flertando com aquele futuro há algum tempo. Ela era prima de uma aluna do cursinho onde eu tinha começado a trabalhar há alguns meses. Era minha última cartada no ramo da docência. Apesar de não possuir um plano B, caso não desse certo ser professor no modelo pré-vestibular, imaginava restar apenas meu projeto inicial: virar um escritor de romances nada populares no Brasil. Viu?! De novo caímos naquela história do idealista alienado e do visionário comprometido com a arte. Nesse sentido, acho que foi a Fernandinha Montenegro que disse que só havia se tornado atriz por que era algo que ela simplesmente não conseguia não ser. Claramente me identifico com esse pensamento porque... de onde você acha que vem um texto como este? Naturalmente, dessa mente, dessa alma, desse espírito e desse corpo que não sabem ser outra coisa senão esse caos de sentimentos e memórias famintas por alguma justificativa a todo instante.

Apesar da resistência a lidar com os protocolos e algumas incoerências do processo que envolve ser um professor de cursinho pré-vestibular numa lógica em que os alunos quase sempre não estão dividindo o espaço de uma aula necessariamente para aprender, para pensar e se construir como sujeitos – olha o nível da utopia daquele jovem professor –, acabei sendo promovido. Com o aumento da carga horária, a possibilidade de trabalhar apenas um período e a necessidade de estar todo dia pela manhã no cursinho, ficou claro que era chegada a hora de zarpar.

Já estava morando no Sudoeste, a apenas 11 minutos do trabalho e pouco mais de 15 do meu lugar favorito na cidade: o Casanova Poker Lounge e Karaokê. Apesar de estar, enfim, próximo ao centro da capital, as madrugadas se mantinham ativas no exercício de lidar com as inquietações diárias, então eu praticamente não saía, a não ser para o Casanova, onde casualmente encontrava companheiros de boemia com quem me esvaziava de mim mesmo sem ter de necessariamente precisar colocar palavras no papel ou em algum editor de textos. Apesar disso, ainda não parecia suficiente. Voltava por volta das 5 ou 6 horas da manhã para minha kitnet de 18 m², geralmente menos sobrecarregado, mas ainda vazio. Numa dessas, tivemos uma conversa um pouco mais profunda e descobri que ela trabalhava a poucos metros da minha nova residência.

E foi assim que tudo foi se desenhando, madrugada a madrugada, cada vez mais eu e a estudante de audiovisuais do outro quarteirão, conectados subitamente pela sensibilidade que só emerge diante de uma obra de arte, mas também pela indisposição e até pelo medo de se expor ao encontro quase poético das duas artes, de um lado a escrita, do outro o cinema. Mal sabíamos que ambos contemplávamos muito mais do universo artístico do que podíamos imaginar naquela época. Se por um lado ela se aventurava nos primeiros movimentos do pole dance, eu, enfim, havia me rendido à trajetória de um compositor e intérprete solitário. Creio que, cada um a seu modo, buscava sua parcela de identificação consigo mesmo e, nesse movimento, acabamos nos identificando de uma maneira quase inquestionável.

Minha paixão pela arte acabou me pregando uma peça e, quando me dei conta, já parecia um tanto tarde, porque meus afetos pela criação passaram a quem a executava. Complexo isso de separar a arte de seus materializadores, não? Acho que por isso eu me pegava constantemente sobressaltado com os batimentos descompassados ao ouvir a voz do bigodudo cearense, ou a do ariano brasiliense, ou a do poeta irreverente carioca... de um modo não tão compreensível, porém sensível, sempre estive ali apaixonado por Belchior, Renato, Cazuza... assim como a estudante de audiovisual, eles me inspiravam a compor canções e escrever textos que às vezes beiravam uma declaração de amor póstuma.

Dentro de alguns dias, já havia se tornado hábito esperar até por volta das 1h da madrugada para encontrar minha confidente e crítica literária. Sem sequer tê-la visto, sentia-me estranhamente identificado a ponto de abrir para ela as inquietações nossas de cada dia. Acho que com ela tive um daqueles vislumbres do que seria poder fluir. Então me permiti os primeiros versos.

Não é todo dia que a gente encontra uma companhia para poder dividir

As palavras mais bonitas, madrugadas infinitas que são feitas para a gente curtir

Fui bastante honesto porque era exatamente isso o que estava acontecendo. De repente, minhas madrugadas sozinho, em frente ao notebook, já não eram mais assim tão solitárias. Ainda que ela não se fizesse presente, eu sabia que havia alguém do outro lado esperando pelo próximo encontro, pelas próximas palavras, pelo próximo texto, a próxima música. Queria tocá-la, abraçá-la, sentir a textura de sua pele e olhar seus olhos profundos, mas era bem mais do que isso. Entretanto, éramos dois amantes frustrados na iminência de mais uma exposição a um risco recorrente e amargamente familiar. Ensaiei alguns versos... (O salto)

Quem te fez mal

Não sabe, bailarina

Não sabe por que dança

Não faz ideia

De que toda plateia

Tem vivo na lembrança

Seu primeiro salto

E que espera atenta

[Ela se curva]

O ponto alto

No auge da minha ingenuidade e fantasia eu queria poder fazer algo – qualquer coisa – para mostrar a ela que a paixão não só era possível como uma experiência importante e até necessária a pessoas como nós. Tinha tanta coisa para falar e ao mesmo tempo compreendia tão profundamente o cuidado que deveria ter para não a machucar que recorri aos poemas – meus antigos companheiros abandonados a alguns anos por tempo indeterminado – para apresentar a ela minhas intenções da maneira mais sensível, cuidadosa e singela possível. Na esperança de fazê-la entender minhas intenções mais honestas, cultivei as mais belas rosas no meu jardim particular e as fui entregando gradualmente à medida que a dançarina me apresentava, em leves transbordos, suas mais sinceras dores (A rosa).

A rosa não se despe sozinha,

Não dos espinhos,

Morrem com ela

Talvez as pétalas...

É preciso ter cuidado

Leveza no trato

Firmeza no tato

É preciso ser poeta

Tocar com palavras

Trocar uma prosa

E da poesia concreta

Fazer a casa da rosa

Aqueles novos poemas foram as sementes de onde germinaria A Casa da Rosa e a estudante de audiovisual seria a corresponsável pelo jardim onde apenas ela havia entrado até então. Sem qualquer esforço mais acentuado, as palavras emergiam e iam ganhando forma. Daí surgiram os poemas concretos dos quais tanto me orgulho. Embora eu tenha total consciência de que não vieram propriamente de mim, aquela experiência que vinha de uma afetação diária muito sincera me colocava em contato com um sentimento profundo de gratidão e reverência por algo particularmente sagrado.

Aquela flor ruiva, dançando na minha mente me permitiu compreender meu lugar como canal sensível que não tinha como se esquivar do quase dever de trazer à existência tudo aquilo de mais sublime que eu sabia (porque sentia) que se movia ao meu redor tal qual as moléculas de oxigênio, que eu não enxergava, mas era capaz de sentir preenchendo meus pulmões, mesmo quando a respiração ficava descompassada sempre que via aquele coração azul nas notificações do celular. Era nosso código. Quando não sabíamos o que falar ou simplesmente não podíamos, conseguíamos ou queríamos, por algum motivo, ensaiar palavras que pudessem nos conduzir a um diálogo mais profundo, apenas mandávamos um coração: o dela em azul, o meu em laranja. Por mais bobo que possa parecer, isso era muito significativo, principalmente porque nos sinalizava a vulnerabilidade natural de quem sente; era um lembrete da nossa limitação.

Num dos poemas que me vieram, creio ter conseguido passar exatamente o sentimento que aquela impotência trazia às nossas madrugadas silenciosas, ainda que sob a certeza de um outro tão vulnerável quanto eu do outro lado da linha (De bandeja).

E mesmo sem se ver

A gente se lê muito bem

Melhor do que antes

Porque,

No escuro,

Eu e você

Somos só figurantes

De um filme desses

Que a gente vê

Às vezes

Como dois estudantes

Era o melhor que eu podia oferecer e eu o fazia de todo o coração, mesmo diante da possibilidade de soar um tanto insistente sem querer. Acontece que a identificação a que havíamos chegado não me permitia simplesmente ignorar. Por outro lado, aquela impermeabilidade dificultava que nossa história criasse raízes mais profundas e consistentes. E como eu queria que isso fosse possível! Minha agonia era a certeza irritante que vinha da constatação frequente de que não dependia apenas da minha vontade, dos sentimentos mais sinceros ou de todo o cuidado com que eu tratava cada questão que ela me apresentava. Talvez eu ainda fosse jovem demais para uma demanda tão madura como aquela. Tudo que eu mais queria era viver o que a vida teria nos reservado e enfim poder me despir daqueles medos que claramente nos puxavam em direções opostas.

Ao som do rock ’n roll, hip-hop eu sinto o flow e deixo a batida me levar

Tudo o que eu mais quero é poder ser sincero, há muito tempo eu espero

Então vem cá, minha boca vai te fazer viajar...

Batia um sentimento de injustiça. Mas por quê? Eu estava fazendo tudo com o maior cuidado do mundo! Provavelmente ela já havia se dado conta de que, por melhores que fossem as intenções, o manejo ainda seria o de um jovem eufórico tipicamente estabanado. Na minha cabeça, não fazia nenhum sentido. Enquanto agi de forma imprudente, distante, cautelosa, vivi rodeado por companhias efêmeras e agora que me dedicava de corpo e alma as coisas pareciam simplesmente não funcionar. Mirei em um deus e acertei no vidente, humano, imperfeito, impotente, impaciente. Àquela época me faltava compreender algo fundamental: não adianta ser de corpo e alma se não há espírito; e essa era justamente a porção de mim que me impedia de viver a plenitude do que sempre esteve preparado para cada um de nós.

O espírito não era livre. Na verdade, eu sentia sua presença, permitia dialogar com ele, mas temia ter de abrir mão, porque minhas referências apontavam para a vida espiritual como uma vida de abnegação, regida por inúmeras renúncias e privações. Acho que eu só não queria ter de perder, mas paradoxalmente já vivia perdido há muitos anos; e, o pior de tudo, sempre à espera de alguém que pudesse me redimir, que viesse me salvar, como tinha escrito em Corações em Guerra, primeira música lançada pela K-Libre:

E eu que sempre fui como um soldado

Agora estou com medo de novo

E acreditei por tantas mil vezes

Que viria alguém me tirar daqui

Não queria ter projetado nela essa minha ânsia messiânica por alguma luz no meio das madrugadas, até então iluminadas apenas pela tela de um computador. Mas acho que ela entenderia se eu dissesse hoje que naqueles dias, estar em sua companhia era a forma que eu encontrava de ser mais homem e menos máquina, servindo mais ao sonho do que ao sangue que o mundo me cobrava. Até certo ponto, na minha mente, aquilo era uma oportunidade quase divina de ser útil na vida de alguém que valia a pena. Minhas músicas e poemas acabavam, então, se tornando apenas uma demonstração de gratidão, como quem diz “ei, moça, não sei porque quero dizer isso, mas obrigado por me dar a oportunidade de me sentir um pouco mais vivo!”. Por outro lado, aquela energia dava vida a formas até grotescas de personagens como as atrações do mais belo Freak show: a bailarina perneta, o palhaço decadente, o mestre de picadeiro um tanto perverso manuseando seu chicote perante a multidão vibrante e, agora, um vidente fajuto, cuja previsão não passa da própria surpresa frente ao óbvio.

Em que medida, ser a fonte de inspiração para esse tipo de espetáculo valeria a pena? Eu tão canceriano, ela tão virginiana... tomando toda energia destinada ao fim da procrastinação e a usando para expandir meu esconderijo criado para um ócio nostálgico capaz de reproduzir aquela saudade do encontro que ainda nem havíamos tido. É que na minha mente já tinha sido tão perfeito que a gente só precisaria materializar. Bem como eu fazia aos meus poemas, acreditei que escreveria a vida, o primeiro encontro e nossa relação. Que vidente seria melhor que esse capaz de, não apenas prever o futuro, mas trazê-lo a existência?

Já não era surpresa que Deus tinha seu encontro marcado comigo. Talvez eu estivesse mesmo fugindo Dele e não da profecia de Lalá ou das cartas do tarot. Tal qual um pai faz ao filho, Ele esteve ali me dando corda, mas sempre atento ao meu ímpeto por entrelaçar as mãos ou o pescoço, afinal, sendo Ele quem é, conhecia-me como nem eu mesmo seria capaz. Eu é que não O conhecia e por isso O via como um velho atento, com um humor ácido e bastante irônico sempre à espreita para me frustrar, não por amor, mas por humor. Assim, meu deus era uma versão radicalizada de mim mesmo que me fazia considerar inútil a intervenção de qualquer um outro nos processos dos quais eu era senhor, sem saber.

Minha melhor amiga era uma acompanhante de luxo gaúcha que havia desenvolvido um amor muito genuíno pelo meu cachorrinho Coringa. Quando eu viajava, deixava a chave do apartamento com ela e compartilhava a guarda do meu filhote, que a amava porque, na minha ausência, ele se tornava o vira-lata mais passeador e comedor de brócolis do Sudoeste. Coringuinha, assim como eu, amava brócolis. O meu era refogado na manteiga, o dele só no vapor, como recomendava minha vizinha sulista. Não era por mal, sabe? Eu era pai de primeira viagem, atrapalhado com tudo o que não envolvesse a palavra escrita ou uma sequência melódica. Por isso, foi a ela que acionei quando veio a confirmação de que, enfim, o primeiro encontro aconteceria.

Fomos ao Brasília Shopping e, enquanto eu escolhia uma lingerie bem interessante para um ensaio fotográfico da minha amiga, ela se ocupava da tarefa de me trajar para o desafio da primeira impressão do primeiro encontro. Era gostoso de ver o quanto minha vizinha se animava com minhas pequenas conquistas em potencial. Naquela época, bastava falar o nome da estudante de cinema para que ela parasse tudo o que estava fazendo, subisse dois lances de escada e fosse bater na porta do meu apartamento, atendendo ao chamado que vinha do segundo andar.

— Conta mais! Me atualizaaaa... como foi?!

— Amiga... como é que eu posso dizer sem parecer emocionado demais...? Não posso dizer que foi perfeito, porque eu tenho certeza de que há coisas muito melhores nos esperando, mas foi... sei lá... eu me senti... como posso dizer...

— Encantado?

— Não... nada de ilusório.

— Apaixonado? (disse se atirando no sofá e suspirando)

— Também não, mas talvez...

— Assustado? Surpreso? Um potro saltitante!

— “Potro”?

— É... eu sou do Sul, então é potro.

— Cavalo?

— É, serve...

— Nãaaao... inclusive, até achei exagero, mas...

— Fala logo!

— Vivo! É... acho que é isso. Eu me senti vivo!

— Essa cena toda pra dizer isso?

Apesar da clara frustração da minha amiga, até hoje não achei uma palavra melhor para definir o que foi aquele primeiro contato cara a cara, corpo a corpo, lábio a lábio, depois olho no olho. Há algum tempo eu não me sentia assim, pelo menos desde tudo o que havia se passado em São Paulo, naquele primeiro contato com a May. Sentia que a vida estava me dando uma nova chance, que eu não podia desperdiçar, mas, ao mesmo tempo, era esse “não poder desperdiçar” que me assustava, mais uma vez. Daí, os dias seguintes foram tão autorais que a trilha bem que podia ser apenas a repetição do refrão:

Se ela soubesse que você é um cara diferente,

Talvez te deixasse entrar no mundo dela

Com os pés descalços, sem fazer barulho

No mundo escuro que ela protegeu até agora

Não sei até que ponto esse era um padrão que eu queria ou buscava mudar, porque, até certo ponto, essa imagem realmente me representava. Eu era, de fato, um cara diferente tentando adentrar esse universo mais impermeável criado pelas várias frustrações em relacionamentos anteriores; até porque não muito tempo atrás era eu quem ocupava esse papel de vilão na vida de algumas mulheres. Não que eu fosse mesmo ou gostasse de ser esse vilão, mas é o que se tem de uma equação que junta um homem inseguro, com baixa autoestima numa sociedade em que os homens simplesmente não podem ser assim ou acabarão sozinhos na selva dos desesperados pela sua fatia de reconhecimento – que geralmente coloca a mulher como um troféu. Percebe? Era contra essa “verdade” que eu relutava internamente, enquanto os homens à minha volta achavam que eu pegava muita mulher porque sabia deixar as mulheres “maluquinhas” com poemas genéricos que facilmente caberiam em uma página como aquelas de citações para cartões de dia dos namorados.

Simplesmente nada a ver. Meus poemas sequer eram meus e isso era uma das coisas que mais me angustiava. Sem uma afetação, um sentimento suficientemente inquietante, eles apenas não existiam. Por sorte – ou uma providência divina muito curiosa – minha mente era, como disse anteriormente, naturalmente um jardim de inquietações. Além disso, tudo o que eu escrevia (para além dos 50 dias.) definitivamente não era pensando propriamente em mim. Claro que eu sempre aprendia uma coisa aqui, outra ali, mas fazia questão de construir algo bem personalizado, endereçado e baseado em uma motivação inquestionavelmente real. Por isso eu disse a ela

Garota, eu não sei como te explicar

Mas algo me dizia que eu iria te encontrar

Há alguns dias me sinto em um sonho

E cada verso que eu componho me deixa um pouco mais seguro

até porque era o que podia ser dito. Não foi exatamente o que aconteceu? Não nos encontramos? Como eu disse, os dias seguintes não foram ali naquele sonho do escritor crente do seu dever qual alguém capaz de oferecer palavras como rosas em um buquê para colorir um dia especial ou até tornar um dia qualquer especial na companhia de quem se quer muito fazer o bem? Era minha forma de devolver à musa os afetos que haviam me acometido depois de devidamente filtrados e embalados pela minha habitual insegurança.

Como posso dizer sem parecer emocionado demais? Não houve nada de propriamente mágico naquele primeiro contato porque não fomos a outro espetáculo senão o do encontro possível dentro das quatro linhas do quadradinho brasiliense. A mágica estava dentro de nós, assim como os personagens, não do meu Freak show poético, mas do cinema mudo nada antiquado dela. Poucas palavras foram necessárias e até as cores deram lugar à monocromia dos gestos esfumaçados de dois jovens adultos caminhando serenamente pelas trilhas de pedra entre a grama umedecida do Pontão do Lago Sul, o lugar onde nasceram os textos mais reflexivos do 50 dias.

Ainda hoje sou capaz de lembrar com certa riqueza de detalhes a leveza daquele momento, que mais poderia ser traduzido pela palavra encaixe. Da aproximação calma, às palavras espaçadas, ao gesto sutil, aos olhares silenciados, ao abraço acolhedor, à respiração continuamente lenta, aos lábios molhados, às pernas perfiladas... tudo esteve devidamente encaixado, de uma maneira que nem meu melhor poema seria capaz de arriscar a descrição, porque provavelmente soaria um exagero bastante platônico e até adolescente... não... eu não era o vidente, estava apenas entregue ao devaneio de um apaixonado qualquer desfrutando da efemeridade de uma cena roteirizada por alguém tão bom em criar momentos como paisagens e – por que não? – o homem e a mulher que ali estavam para dar ao momento e à paisagem, de um lago artificial refletindo o pôr-do-sol mais natural de Brasília.

Sem dúvidas, era um presente divino, no entanto vinha com aquele cartão amargo como café sem açúcar. Num instante, não mais o café de Lalá, com biscoito de sal com manteiga, mas um lembrete de que o café só podia ser feito por ela porque os ingredientes já estavam devidamente colhidos e comodamente processados. Acontece que não havia açúcar na constatação de que eu até podia me dizer arquiteto dos meus textos, mas jamais escritor de outra narrativa que não fosse a minha. Com esse tipo de coisa eu já vinha entendendo que simplesmente não podia sequer brincar.

E olha eu não sou vidente, sou até inconsequente demais para brincar

Mas todo mundo tem passado e estar apaixonado é algo complicado demais para lidar

Tudo o que eu não queria era entrar mais uma vez para a galeria de homens que frustravam um coração cauteloso e sincero. Pretensioso, né? Tentar garantir que não iremos frustrar alguém só porque queremos muito seu bem... é bem da estupidez da cabeça apaixonada. Eu também não queria fazer promessas que não teria condições de cumprir. Quando dizia a ela que só queria que ela acreditasse, quem ouvia cada palavra primeiro era eu e isso fazia do meu pedido a ela quase uma oração a Deus simultaneamente. Não que ela fosse minha deusa, mas é que no mesmo momento em que eu a encorajava, queria muito que Ele estivesse me ouvindo atentamente para que me mantivesse seguro, ainda que para isso fosse necessário me manter compondo. De fato, a boca falava do que o coração estava cheio:

Mas é que a mente não entende e o corpo sente sem a gente permitir

E se o coração também fala e a boca se cala, é hora de parar e ouvir

Às vezes, como naquele dia lá no Lago e depois no meu apartamento, as palavras tirariam o brilho das performances mais inusitadas que realmente só nos chamam a atenção de um modo devido durante os silêncios que a alma nos permite vivenciar. Eu já estava prestes a abraçar o cinema mudo como minha modalidade de arte preferida, quando algo lá dentro e, lá no fundo veio com uma advertência ao melhor modo “calma lá, meu chapa!” e emendou com “não é por que você é um escritor que toda relação vai ser um romance”. É irônico, sabe? O mesmo coração que se acalmava na presença dela, estava, agora me lembrando do dia mais feliz da minha vida, quando ganhei meu primeiro violão do meu pai... o gesto mais significativo do meu herói me encorajando a seguir meu próprio caminho... fica até difícil continuar, mesmo porque eu tenho essa mania peculiar de escrever ao som de uma sequência instrumental de músicas do Elton John apenas ao piano. Enfim, meu coração só queria me lembrar que o amor só precisa de uma oportunidade, mas que ela (a oportunidade) só tem um sentido real graças a toda nossa história até aquele momento em que ela se faz necessária. Às vezes, a gente só precisa ter o coração aberto para o que virá, daí “open up your heart”:

"Eu sei, dá vontade de fechar os olhos, se desligar de tudo e apenas sentir. E tudo bem, é isso mesmo, pode se deixar levar, essa é a ideia. Então lembra do dia mais feliz da sua vida? De como se sentiu? Eu sei que sim, difícil conter esse riso no canto da boca. A gente se conecta, no fim e, por mais que você não queira, toda vez que ouvir 'open up your heart' você vai lembrar de mim".

O que a minha mente queria me comunicar era que, lá no fundo, eu não seria lembrado por nada que tenha vindo após a oportunidade que minha confidente e companheira de madrugadas já tinha me apresentado. Minha ansiedade para tê-la ao meu modo me havia me cegado para o fato de que, ao seu modo, ela já vinha abrindo seu coração. E, nesse caso, não há coração meio aberto, um coração se abrindo podia não estar como esperávamos, mas já estava indiscutivelmente aberto, por menor que fosse a abertura. Curioso é me dar conta de que eu escrevi como se ela não quisesse se abrir para o que estava acontecendo...

Se era eu quem insistia em enfatizar de maneira sutil o incômodo que isso trazia ou os perigos que poderiam vir, talvez o coração fechado fosse o meu.. apesar de isso estar quase estampado na testa, mesmo com aquela pedrinha falsa que todo vidente tem um pouco acima dos olhos, mais ao centro da cabeça, denunciando meu personagem tosco, ela se permitiu, mais de uma vez até. Do outro lado da tela, acho que eu acabei entrando em um dilema entre meus poemas e músicas fantasiados como eu e uma experiência real como a que ainda me faltava àquele romance, que acabou, na verdade, se tornando este conto.

Foi difícil me dar conta de que o vidente era mesmo só mais um personagem necessário ao momento devido à minha inabilidade em apenas ser quem eu era. Ele, assim como tantas outras personas que eu criei merecem, até certo ponto, minha gratidão por possibilitar que eu me desenvolvesse dentro do casulo que só foi criado a partir dessas representações. O problema é que o vidente não se comprometia com a realidade e apenas se esforçava apara sustentar a ilusão de que as obviedades mais previsíveis eram, na verdade, profecias sensíveis e até audaciosas. Acontece que ele nunca previu nada para além do primeiro passo; era um especialista em primeiras impressões, porque sabia que não sustentaria nada mais profundo ou contínuo. Enquanto se ocupava insistentemente das primeiras vezes, fugia desesperadamente do propósito do qual ele será um eterno coadjuvante.

Desprovido de qualquer protagonismo, creio que o vidente foi a minha maneira infantil de me esquivar da profecia de Lalá. Tanto ele como o mestre de picadeiro, a bailarina, o palhaço... se esforçavam em chamar atenção para que o verdadeiro protagonista não tivesse que se comprometer com a própria história que escrevia. Por muito tempo eu até cheguei a crer que era o autor e isso era terrível e maravilhoso ao mesmo tempo, porque os enredos envolventes, os textos impactantes me rendiam elogios, prestígio e notoriedade. Por outro lado, enredos inexpressivos e textos aparentemente medíocres se tornavam meu pesadelo e a constatação de uma promessa que não vingou. Acontece que, ainda que eu fosse uma promessa, alguém haveria prometido, o que me tiraria inquestionavelmente da posição de autor de qualquer coisa que viesse por meio de mim.

Então o protagonismo se tonou uma grande bobeira, entende? Ser o “protagonista da minha história” não passaria de um título bastante relativo. Haverá sempre um protagonista acima do meu próprio protagonismo, porque dizer que o texto é meu equivaleria a um mensageiro se dizer não o portador da mensagem, mas quem a formulou. Pois bem, está claro, né? Quando eu entendi todas essas coisas, coube a mim desfazer as malas, abandonar toda a bagagem e seguir apenas de coração aberto. Deixei as fantasias no cais e segui com a roupa do corpo, acenando para a outra margem, de onde avistei minha amiga comentando com alguns entre a multidão que se despedia da enorme embarcação:

— Já bati muito papo-cabeça com ele, tomando café e comendo biscoito de sal com manteiga!

Lá no fundo, dava para ouvir, ecoando por meio dos alto-falantes de uma loja de instrumentos na esquina, a voz digitalizada do vidente repetindo para a eternidade: “há alguns dias me sinto em um sonho e cada verso que eu componho me deixa um pouco mais seguro... é, moça, eu acho que eu previ o futuro!”.

Espero que a estudante de audiovisuais tenha estado entre a multidão cantante daquele dia. No entanto, ainda que não estivesse, na minha mente ela sempre estará, dançando como uma rosa virginiana balançando suas mexas ruivas ao som de uma batida hip-hop ou rock n’ roll, deslizando num pole como a protagonista de um filme antigo bem nostálgico ao melhor estilo teatro musical, com falas bem poéticas e trilhas comoventes, exatamente como eu imagino que soará este registro, por madrugadas e mais madrugadas, em que os inquietos como eu ainda escrevem textos para colorir a vida de quem ainda vai chegar.

Hudson Maciel
Enviado por Hudson Maciel em 02/08/2023
Código do texto: T7851565
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