a garota do 302

na escada de um antigo prédio, um casal está deitado na escada, como se o tempo pudesse parar para que eles possam ficar assim, juntos, deixando a vida acontecendo lá fora, enquanto ficam em seu mundo particular, adiando o fim.

num primeiro momento, a garota do 302, com seu cabelo ruivo, all star vermelho e fones de ouvidos desceu as escadas, sem a sua alegria usual. com um livro embaixo do braço, cantarolando baixinho, ela descia escadas, cumprimentando todo mundo com um sorriso, todos os dias. mas hoje não. está séria, sem seu sorriso que ilumina todo o seu rosto. ela parou no meio da descida e se sentou nos degraus, com algumas lágrimas no rosto. passou a manga do suéter caramelo e deitou-se nos degraus que conhece os passos de cada morador. por um bom tempo ficou apenas olhando o teto iluminado pela luz que entra pela janela do corredor. fecha os olhos. só quer o mundo pare de se mover sem se importa com o turbilhão que acontece dentro dela. até que ouve passos de alguém subindo. é o garoto que tantas vezes fez o mesmo percurso, subindo os degraus até o apartamento 302. ele para ao se aproximar e vê um par de all star vermelhos, velhos conhecidos seus. o garoto de cabelo preto com seu all star cinza se aproxima vagarosamente e a encara. se abaixa e deita ao lado dela. ficam assim por alguns minutos, em silêncio, compartilhando uma cumplicidade costumeira e o mesmo ar. o silêncio é quebrado por ele. “eu sinto muito”, ele diz. as palavras pairam no ar por alguns segundos. “não sinta, está tudo bem”, ela responde. vira o rosto para encará-lo e sorri. um sorriso triste, mas que o lembrou de como o sorriso dela poderia apaziguar guerras. ele pegou na mão dela, entrelaçando os dedos, sentindo a maciez da sua pele, gravando em sua mente o encaixe perfeito das mãos. ele olha em seus olhos castanhos e vê o quanto ainda a ama. suspira. “me deixe gravar esse momento, para quando eu estiver sozinho no sofá da minha casa, numa terça-feira qualquer, morrendo de saudades de você, eu posso evocar a sua lembrança de forma tão vívida como agora. quero memorizar cada particularidade sua, para quando não fomos mais do que duas pessoas que se amaram tanto um dia, que insistem em serem dois desconhecidos, com seus conflitos internos e corpos que jamais ocuparão o mesmo espaço novamente. que eu me lembre que fomos dois amantes que ansiavam pelo toque da pele e da alma um do outro. porque eu sei que te toquei, profundamente. assim como você me tocou. eu te vi nos seus piores dias, chorando em alguma situação ruim, e também te vi feliz, pulando no meio da sala de estar. adoro te ver com seus livros e tocando o seu violoncelo. e você também me tocou com suas manias, seu senso de humor ácido e gosto por sorvete de menta com chocolate. você conseguiu arrancar de mim as risadas mais honestas quando estávamos juntos. você me abraçou em meus dias sombrios e me ensinou a ser paciente e a gostar de vinho. e a memória de nós dois vai me consumir porque é o único abraço que vai me consolar em meus dias de saudade, é a pessoa que ainda não fugiu de mim. nunca mais o olho no olho, as mãos unidas para atravessar as ruas ou as crises, as piadas, os risos e as discussões. nunca mais os olhares repousando nos meus em alguma festa como seu eu fosse único. eu vou sentir tanto a sua falta, todos os dias, como se ainda pudesse te tocar. já sinto sua falta mesmo estando ao seu lado. por favor, me perdoe. sei que devia pedir para não me esquecer, mas deve. precisa. você merece muito ser feliz. vá viver lá fora, raposinha. o mundo precisa da sua luz. há um novo amor que será todo ser, já que eu não pude. amo você sempre e mais um dia.” ela chora e ri com suas palavras. ele também está emocionado. “eu conheço você como jamais vou conhecer alguém. você me marcou para sempre, minha raposinha”. e tocou o seu rosto com carinho, afastando as mechas ruivas que tanto ama. beijou seus lábios suavemente, uma última vez. ambos de olhos fechando tentando agarrar esse último momento, prolongando-o, adiando o inevitável adeus.

a vida é um pouco injusta mesmo. às vezes você encontra com alguém que é tua pessoa da vida, até que um dia, de repente, ela se torna uma completa desconhecida, uma lembrança vaga do que foi bom. ela se transforma em mais uma história que precisa ser deixada para trás para seguir em frente.

Belinda Oliver
Enviado por Belinda Oliver em 03/01/2023
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