O corredor e o luto

Há dois mal vividos e morosos anos fiz casa neste corredor. O exato porque, não me lembro bem. O que lembro é que desde que ela escolheu sair e não voltou mais, minha morada se tornou esse canto.

Passo horas aqui. Por mais que eu tente fugir, acabo sempre neste canto da casa. A contravenção, trocando tortuosos olhares com esse amontoado de madeira velha.

É como se a minha mente fosse hipnotizada pela falta de memória que habita o limbo entre a porta do meu quarto e o fim do corredor. À minha frente, esta a porta do quarto dela, há quatro ripas de distância de mim. Cálculo que sejam 40 centímetros apenas. O que é curioso, pois me sinto a quilômetros de distância das lembranças que moram ali dentro.

No entorno, a casa é toda velha. A madeira marrom comprada há 57 anos, agora traveste um tom acinzentado e estampa a falta de cor que preenche meus dias.

Entre uma ripa de madeira áspera e outra encardida, sobram fendas que deixam livres a passagem do ar, do vento e da sensação dos olhares que me seguem entre um cômodo e outro.

Apesar disso, quando estou em frente a porta do quarto dela, fico sem ar. É como se as frestas da madeira se fechassem, isolando o corredor do vento e cessando também seu assovio ao passar pelo meio dos sarrafos velhos. Aqui o único som que escuto é o do silêncio.

Só percebo que acabei aqui de novo, quando minha respiração acelera e ajuda o peito a pedir por ar. Nessas horas é como se eu acordasse dentro de um pesadelo daqueles que se repete.

Minha mente parece hipnotizada e me deixa presa bem ali. Nesse meio de nada. Entre o incerto e o desconforto.

Como uma tentativa de acabar com isso, todos os dias eu arquiteto planos para viver uma vida normal. Acordo listando tarefas para ocupar meu dia inteiro e não ter sequer tempo de pensar que existem lembranças dela trancafiadas lá dentro. Mas quando menos espero, sinto a falta de ar se manifestar por meio da respiração acelerada. E, de novo, estou aqui.

Quando esse pesadelo completou um ano, passei a beber um litro e meio de água antes de levantar da cama. Esperava minha bexiga doer e deixava meu corpo chegar bem próximo de fazer xixi nas calças. Tudo só para ter certeza que iria passar correndo pela porta do quarto dela.

Ainda assim, não adiantou, a vontade de ir ao banheiro sumia, como se junto da consciência, o corpo também se esvaziasse por completo de tudo que eu uso para preencher o espaço da dor.

Mas na terceira semana em que me enchi de água antes de passar pelo corredor, percebi que falhei ao sentir minhas pernas umedeceram.

Olhei para baixo e vi toda a água que eu bebi antes de levantar, escorrer pelo meu corpo e se espalhar pelas frestas do assoalho riscado.

E mais uma vez, sem entender porque, continuei por mais alguns minutos ali, olhando para o trinco de metal e para as 4 ripas de madeira: descascadas no centro e empenadas nas pontas.

Quando consegui voltar a comandar meus movimentos, usei a calça azul clara do pijama que estava vestindo para secar minhas pernas. Em seguida, a soltei ali por cima do xixi na tentativa de não espalhá-lo ainda mais.

Nesse dia me lembro de tomar banho pensando que talvez eu precisasse de ajuda. Depois, esfregando a sujeira do corredor, me perguntei — pela primeira vez em anos — o que existia por trás daquela porta.

Foi estranho porque eu lembrava que ela morou aqui. Que ela era a pessoa mais importante da minha vida. Mas não lembrava o porquê. Lembrava também que compartilhamos a vida nessa casa, incluindo esse quarto. Mas não lembrava as situações que vivemos. Não lembrava o que tinha por trás da porta.

Fui atrás de um médico pela falta de memória. Mas ao saber de toda minha história — ou pelo menos da parte que eu lembrava — ele me encaminhou para uma psicóloga.

Estou a 1 ano conversando quinzenalmente com Joana, minha psicóloga. Os lapsos de consciência continuam me levando até a porta do quarto de Cassandra. Apesar disso, tenho sofrido menos, porque Joana me traz a tranquilidade de saber que está tudo bem não estar tudo bem.

Ainda não consigo sair de casa, então faço minhas sessões por vídeo-chamada. Também não sei explicar porque, mas faço aqui no corredor. Puxo uma almofada e me sento aqui, escorada na parede. De frente para a porta do quarto de Cassandra.

Tenho costume de riscar a madeira com o resto de unha que ainda não roi. E nos minutos finais da última sessão, ao me deparar com o chão todo riscado a minha volta, comentei com Joana que se completavam 2 anos dos meus lapsos de consciência e 1 ano que estávamos em terapia juntas.

Ela então me pediu para refletir porque eu só falava de Cassandra e do quarto que mantenho fechado nos minutos finais dos nossos encontros.

- Reflita, dentro dos seus limites, sobre como você tenta evitar o assunto durante a sessão toda, e no final acaba falando dele rapidamente — Ela disse.

Puxei o ar profundamente e no exato milésimo de segundo em que o ar ainda estava preso no meu pulmão, pensei: então é isso.

Entendi porque todos os dias eu acabo em frente a porta do quarto de Cassandra. De alguma forma, meu corpo está tentando pedir socorro. E a forma como ele encontrou de fazer isso é tornando prático e palpável aquilo que está me destruindo por dentro: o luto.

Não importa o que eu estou vivendo, nem as conquistas e derrotas. Não faz diferença o quanto eu me planeje. Não interessa a forma como eu vivo. O luto nunca vai embora.

Por isso, vai sempre existir um momento do meu dia — de t.o.d.o.s os meus dias — que quando eu menos esperar, vou estar de novo nesse mesmo lugar. No limbo do corredor, em frente a porta das lembranças trancafiadas.

As lembranças foram bloqueadas por uma barreira que eu não decidi criar e também não tive coragem e forças para romper.

E a verdade é que eu posso tentar fugir todos os malditos dias da minha vida. Posso não abrir a porta das lembranças, não vê-las e não confrontá-las. Mas elas vão sempre estar ali, ocupando espaço. Porque essa casa sou eu e esse quarto de lembranças trancadas há 2 anos é o luto que está dentro do meu peito.

Fiquei atordoada e enquanto essas frases se passavam na minha cabeça, ainda confusa, perguntei com urgência para Joana:

- Esse sentimento e essas coisas que estou passando, serão assim para sempre?

Sem precisar entender o contexto dos meus pensamentos e com toda naturalidade que ela costuma ter, seus ombros balançaram lentamente e ela disse:

- Só saberemos a resposta no dia em que você abrir a porta.

Aline do Amaral
Enviado por Aline do Amaral em 02/05/2022
Código do texto: T7507996
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