Mundo Cão

Todo mundo deve concordar, pelo menos deveria, que é muito bom ser amado. É muito bom ser adorado, e amar, espalhar por aí diversão, ficar zonzo de tanto rir. Meu mundo cão não posso dizer que foi a maravilha que sonhei. Na verdade, os sonhos quase não existiam. Difícil parar para sonhar quando se precisa sobreviver. Eu não recebi amor quando filhote, graças ao abandono de algum ser não humano, não racional, não emotivo. Eu fui abandonado em uma caixa de papelão, com mais cinco irmãos meus. Éramos tão pequeninos, cabíamos com facilidade em apenas uma mão humana. Fomos jogados a mercê de um destino incerto, em uma rua vazia. Deixaram-nos sem piedade, sem resposta e sem carinho. Não iríamos durar naquele mato na calçada, em uma rua esburacada esquecida. Parecia que era um lugar feito exatamente para jogar coisas que não tivessem utilidade. Infelizmente, nos compararam assim. Infelizmente escolhem lugares vazios e esquecidos para jogar lixos.

Só que a gente deu sorte, eu e meus pequeninos irmãos. Uma senhora que passava por ali, catando lixo encontrou a caixa. Ela tomou um susto, minha única lembrança de quando era filhote, e a mais feliz. Ela, em uma vida cercada por crueldade, se sentiu na compaixão e no dever de ajudar eu e meus irmãos peludos. Saindo daquele lugar, eu começaria a acreditar em um renascimento, porque o que nos esperava era uma morte ardilosa, e por um acaso escapamos. Não lembro quem nos jogou ali, e fico até feliz por isso. O amor é ainda mais forte que um, dois, quatro, ou sete bilhões de humanos desalmados, que tem coragem de matar um cão de próprio punho sem remorsos. Se você se enquadrou nestes bilhões e não gostou, a ideia é essa. Sou pequeno no meu porte, e gigante no meu amor.

Essa senhora com o pequeno gesto mudou nossas vidas. Só que nossas vidas não permaneceriam unidas, pelo menos de corpinho presente. Fomos para um canil da cidade, esperando adoção. Preciso agradecer o pessoal que trabalha com os cães de rua, protegendo e dando leito. Vocês com certeza não se encaixam nos seres desalmados. Vocês entendem um pouco do tanto de amor que podemos transmitir, e agradecemos essa sintonia. Meus irmãos foram adotados e eu demorei mais um pouco para ter a mesma sorte. Eu pensava que ninguém iria me querer, e isso me aborrecia. Um cão peludo de pequeno porte, vira-lata. Não entro como moeda de negócio, e aos olhares de muitos, sou irrelevante, nem existo. Queria ter ido com meus irmãos, mas bem depois soube que uma doença acometeu todos e nenhum sobreviveu. Demoraram a receber um diagnóstico, e em filhote o processo de uma doença é devastador. O amor deles ficou comigo, por toda a minha vida.

Eu tive como donos um casal de idosos, que tinham como renda seus salários de aposentadoria. Eles se sentiam solitários, pois seus filhos e netos moravam em outros países. Queriam uma companhia, queriam que eu revolucionasse com o meu amor, com a minha atenção. Eu consegui! Eu não sou modesto, eu realmente tenho muito amor, embora muitos não entendam. Eu tenho uma força gigante para tirar alguém de um estado de melancolia. Esse meu amor fez com que esse casal se amasse ainda mais entre si, fez rejuvenescer as ideias, o espírito jovem começou a surgir no coração dos dois. E assim permaneci, doze anos com eles. Infelizmente, em um ciclo disforme, eles partiram primeiro do que eu, e eu fiquei sem chão. Minha ração perdeu o gosto, minha água e meus mimos perderam o sentido. Fui perdendo os dentes com o passar do tempo e o meu latido foi perdendo as forças. Apesar dessa correria do tempo, eu achava que em um processo natural eu partiria antes que eles. O amor cresceu tanto entre eles que eles tiveram uma diferença de duas semanas, de uma partida para outra. Eles se amavam e me amavam, eu podia olhar através dos óculos e dos olhos fundos deles, aqueles olhos lacrimejantes e felizes. Foram inúmeros momentos assim. Toda sua família surgiu de repente. Alguns eu conhecia e outros tinha o desprazer de partilhar o mesmo espaço. Apesar de todo o amor, eu sabia bem quem era bom e quem não era, e gastava meus poucos latidos furiosos com quem não merecia.

Com doze anos de idade restou uma vida de muito aprendizado, sem ter companheiros ou companheiras, nem filhos. Eu sabia que a minha partida também estava por se aproximar. Um dos netos dos meus donos decidiu ficar comigo e eu vivi intensamente mais cinco anos, com muito amor da minha parte, sempre. Meu pequeno corpo já não tinha a mesma agilidade, meus dentes se perderam e os meus ossinhos enfraqueceram. Meu latido tornou-se um pequeno murmúrio de uivo e minha vontade era de ficar mais deitado dormindo do que pulando ou brincando. Sentia dores ao caminhar, minha visão e audição foram diminuindo drasticamente. Havia me tornado um cão idoso, com dezessete anos de idade. Nos meus últimos dias de vida, quando meu amor começou a diminuir, eu sabia que estava me desligando. Esse neto que me adotou e que não gostava muito de cães, passou a gostar depois de ter minha companhia.

Eu quero que você humano, saiba: pule enquanto puder, brinque enquanto possa rir, viva enquanto estiver vivo. E o mais essencial: ame sem nem pensar tanto, ame como a leveza de um cão vira-lata peludo e pequeno, que nunca mede esforços para ver sua dona ou dono feliz. Cuidar de um cachorro é cultivar o seu próprio amor. Cuidar de um animal e da natureza é uma forma de atingir um amor difícil de explicar, de um sentimento nutrido pela maior beleza da vida: que é aquela que nos conecta e nos dá um significado de viver, com saúde física e mental, com determinação.

Amor de cão é revolucionário, amor de cão é sentimento bom, que nunca deve ser esquecido.

Recesolo
Enviado por Recesolo em 11/03/2020
Reeditado em 11/03/2020
Código do texto: T6885335
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