Sozinha

Muito me foi negado enquanto criança. Me negaram o direito de chorar, de ler, de me tornar a mulher, que tardiamente fui. Me obrigaram a lidar com sentimentos e sensações precocemente. Enquanto que, dentro de mim, a desordem se instaurava.

Nunca tive residência fixa, e o domicílio me foi tirado. Precisamos de dinheiro! - diziam. Na casa de minha mãe, na Vila Rosalí, em São João de Meriti, por repetidas vezes me foi negado o direito de desejar outra mulher, e até de desejar qualquer homem. O cheiro de outro alguém na minha pele sempre pareceu pecaminoso, alheia à vontade de Deus.

Me foi negado o direito de andar tortuosamente pelas ruas dos bairros, e por isso sempre me refugiei na capital do estado do Rio de Janeiro. Ninguém nunca me veria novamente, e, ou se visse sequer saberia o endereço de onde me recolhia e julgava estar em segurança.

Quando criança, digo, enquanto mulher, - pois nunca tive infância, dessas infâncias contadas por tanta gente - eu era arrancada do meu chão, do meu inferno, do meu céu. E no fim, ficava aquele cheiro de homem sudorento, nas minhas cochas. Meu tio avô por parte de mãe sempre dizia o quanto eu era boa em "cuidar" dele "direitinho". Quando minha família descobriu, alguns anos após, também foi negada a minha existência.

Dentro de mim nada se reconhecia. Quando abandonei o lar da minha mãe, também me foi negado a vontade, o querer, o desejo. Minha tia avó por parte de pai contava as fatias de pão, e tomava a minha mão à palmatória, ajustando o pano de prato úmido que segurava embaixo dos fartos seios caídos.

- Você não pode engordar. Mulher gorda não entra no céu, não tem marido, acaba vagando sobre a terra, assim sem rumo como essas as suas pernas.

No bairro de Rocha Miranda, no subúrbio do Rio de Janeiro, eu era acolhido pelo desprezo em forma de amor. Eu estava ali, suprindo a necessidade de duas senhoras de brincar com uma boneca que precisava de reparos. Boneca essa, que não se ente completamente uma boca, ou talvez... Talvez um boneco? NÃO!

"Desde 1446, os homossexuais iam para a fogueira em Portugal. Desde 1497 eram queimados vivos na Espanha. O fogo era o destino merecido pelos filhos do inferno, que surgiam do fogo." - ouvi entre os meus poucos lapsos de atenção, no culto da última noite. E, se não me engano... Ah, esquece...

- Eva, não corra! Você já tomou banho e não pode suar. Temos que economizar na água, não recebemos qualquer ajuda da sua mãe, que só quer saber de nervo de macho! Correr não é coisa de mulher que se prese, mulheres são delicadas. Se você correr sua perna irá engrossas e ficará igual a um rinoceronte. - Eu duvidava, mas permanecia quieta.

Aos quatorze anos tudo muda. Penso que de sete em sete anos, os desdobramentos da transcendência, do metafísico exerce um novo grau. E lá estava eu, deixando o recanto das capivaras mau-gradas.

Demorei a me acostumar a acordar sem jatos de perfumes sobre os meus olhos. Mas, já bem cedo, minha avó materna abria os olhos com o cheiro do café forte exalando às cinco da manha, no Centro de Duque de Caxias. Ante do clareio da manhã, eu engolia o café quase que com a caneca de alumínio, descia a rua quase deserta, e tomava o ônibus até o bairro da Pavuna.

Na escola, agora cursando a oitava série, eu me juntava ao grupo de adolescentes pouco influentes, que me chamavam "Rosa" - apelido para Leite de Rosas. Tempo depois descobri que era devido ao meu mau cheiro.

Na manhã de primeiro de abril de 2004, descobri aos gritos que sempre me seria negado o direito de me descobrir. Abri os olhos e lá estava todo o sangue, minhas cochas lavadas, meu odor pestilento. Eu gritava por socorro. Estava morta. Minha avó descia as escadas, me olhava com desespero.

Percebi que estava viva quando a palma de sua mão estralou no meu rosto. Ela gritava:

- Para de desespero, garota! Agora você é uma mocinha, e se alguém passar a mão nos seus seios, na sua vagina, se algo entrar aqui - ela indicava o meu sexo - eu vou saber! Puta aqui não tem vez, é rua!

Me tacou um punhado de pano - vá se lavar, e mete esse pano de bunda na calcinha!

O que é ser puta para você? Para mim a palavra puta não tinha muito significado aos quatorze anos. Mas me parecia ser algum muito ruim, visto o tom da voz da minha matriarca. Eu puta? Não posso! É algo muito ruim.

Aos dezesseis anos, na Freguesia de Jacarepaguá me foi tirado a esperança. Meu padrinho voltava do trabalho às dezesseis horas religiosamente. Era analista de sistemas de uma multinacional. Ao chegar, o banho estava aprontado, e tia Sarah e eu já estávamos terminando o jantar. Depois de um dia exaustivo, de retirar o pó, passar a escova de dentes nas frechas do piso frio, passar e engomar toda a roupa, lavar os banheiros, retirar o cocô das cadelas, eu finalmente poderia me recolher na área de serviços, sem incomodar o casal na sala que se recheava com a programação da tevê. Eu estendia minha toalha no chão impecavelmente limpo, e mergulhava nos livros de Heloneida Studart.

Annelise era a bibliotecária do CIEP onde eu estudava. Eu era o único frequentador daquele local. Isso me permitia certos privilégios. Todo fim de semestre ela me pedia uma lista de livros, quase a concessão de um desejo. Eu escrevia três ou dois autores, e esperava ansiosamente pela chegada dos livros.

Nessa época eu aprendi a mentir. Eu ficava até o último segundo possível na biblioteca, sob o pretexto de um reforço escolar. Eu engolia à seco - estudar para pilotar fogão? Onde já se viu!? Eu tô mal amarrado mesmo! - gritava meu padrasto.

Aos dezoito anos descobri o medo, a ansiedade, a solidão. Estipulado o horário do meu recolhimento no meu presídio de almas (casa do meu padrasto), me foi estipulado um cronograma de horários. Eu não poderia transitar nas ruas de Camorim após às dezoito horas. Ao retornar do meu curso de cultura e língua inglesa (onde eu possuía bolsa integral, em troca de serviço de meio expediente), tomei o ônibus errado. E fui parar em Guaratiba. Ao chegar em casa às nove da noite, atormentada pelo medo defequei. Eu sentia a gosma aquosa escorrer entre as minhas pernas.

Ao perceber o ocorrido, essa mesma gosma fedida conheceu a minha face, sem direito a jantar ou banho. Meus olhos verdes marejados, mantinha-se cristalizado, empedrado no me medo. Acolhido na minha vergonha. Sozinha.

Yuri Santos
Enviado por Yuri Santos em 24/07/2019
Reeditado em 06/08/2019
Código do texto: T6703416
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