coisas que deveriam ter acontecido em nosso último encontro

     "É. . . Então."
     "Chegamos."
     Paramos em frente à minha casa. Ela desligou o motor do carro e minha preocupação não era em ser assaltado, mas como prosseguir nesta cena. Eu não decorei o roteiro. Também se quer o recebi. Talvez esqueceram de me enviar, pensei. Coisa que pode acontecer caso eu fosse um personagem terciário, sem a mínima relevância para o desenvolvimento do filme. Sabe aquela parte chata do livro que é pulada sempre que a obra é relida? Ou o episódio sem conteúdo importante para a temporada, geralmente faltando três ou quatro para finalmente chegar o finale. Era nesta situação que eu me encontrava.
     Queria ao menos uma música, que cobrisse o fundo para o espectador ter uma noção do que aconteceria no minuto a seguir, dos sentimentos existentes em ambas as personagens. Em minha cabeça tocava uma música digna de filme de suspense do começo dos anos noventa. Admito que um terror da década de oitenta seria melhor, e dirigido pelo John Carpenter se eu pudesse escolher. Adoro os filmes dele, tem toda a insanidade possível para se manter são na realidade do mundo em que vivemos. 
     Meu rosto parado refletia sorrisos tímidos no retrovisor. Eu sentia seus olhos em minha pele, se arrastando e corando meu rosto, mas desviava meus olhar sempre que encontrava o dela, com um sorriso semelhante ao meu.

 
***

     Ouvíamos os Stones. A alta velocidade do carro na transolímpica, voltando para o bolha de mundo que nascemos, me fez fechar o vidro ao meu lado, senão ouvir a música seria uma tarefa difícil. A rua não tremia, ao contrário de minha boca quando eu me virava e olhava para ela, para seus lábios vermelhos, como meus sonhos mais antigos sobre o amor, antes de meu coração tê-lo e distribuí-lo às ruas e donas de fumaças e águas salgadas, cuja vontade de me afogar é imensa. Havia uns anos que eu tentava fazer isso, empenhado a aproveitar toda e qualquer oportunidade possível. Claro, doses quentes de qualquer destilado me ajudavam do mesmo jeito que muletas e bengalas aqueles que possuem alguma deficiencia para andar. Não sobrara assunto a ser discutido. Conversamos e debatemos nossas melhores ideias na ida e enquanto prestávamos atenção um no outro, frente a frente com bolos e cafés entre a gente ou lado a lado com várias pessoas atrapalhando.
     Senti que deveria dizer alguma coisa.

 
***

     Senti que deveria dizer alguma coisa, assim que o carro parou e tive novamente seus olhos em meu corpo. Estivesse ela esperando por uma decisão minha, fosse o primeiro passo de uma vida, fosse uma palavra, uma inclinação a por o verbo em total movimento. E, no fim, tocar seus ombros, tocar sua nuca, tocar o fogo de um desejo tão quente quanto as asas de Ícaro minutos antes de se desfazerem e ele ter o que jamais esperou. Por essas frações que eu me enganava a continuar vivo, e o medo do desastre, a suposição que embasa qualquer fantasia, qualquer sonho de verão.
     Quantas oportunidades dessas eu já perdi a cada cento e vinte mil passos? A cada trezentos mil passos? Um mês de caminhada me parece ser muito pouco. Vou arredondar para um ano, assim soa mais coerente.
     Eram onze horas da noite. Sim, o tempo voa quando estamos nos divertindo, e em um piscar de olhos quando estamos com alguém que muito gostamos.
     "É. . ." eu disse olhando para o portão de minha casa pela janela do carro. "Então."
     "Chegamos." Ela completou minha frase.
     "Gostei muito dessa noite, de sair contigo."
     Ela arqueou as sobrancelhas. "Eu também gostei," embora eu não a encarasse diretamente, sabia como se expressava, das caretas que fazia, do jeito que seu rosto ficava a determinada tonalidade expressa pelas palavras. E isso contribuiu para meu nervosismo. "Fiquei muito confortável contigo nas livrarias, coisa que não fico normalmente com outras pessoas."
     "Devemos fazer isso mais vezes, então."
     "Sim, por favor."
     Soltei o cinto de segurança e me aproximei de seu rosto. "Boa noite." Beijei suas bochechas, uma de cada vez, sentindo uma de suas mãos em minha nuca e seu perfume mais uma vez. Sentindo seu perfume uma última vez, antes de sair do carro, entrar em casa, deitar em minha cama e me questionar sobre essa despedida pelos próximos meses.
Cleber Junior
Enviado por Cleber Junior em 10/07/2019
Reeditado em 10/07/2019
Código do texto: T6692752
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