Querer ser

Chego em casa, o dia está quente em Nísia Floresta. A universidade está em chamas, as pessoas, a cidade, minha cabeça.

Deixo minha mochila sobre o sofá. Estou com dores de cabeça. Talvez eu devesse me hidratar, não lembro de ter tomado água hoje. Empurro com a água 100mg de Sertralina. Subo as escadas. Me deito.

O magistério está sendo perseguido. Não consigo mais concluir uma aula de de Direitos Humanos sem que hajam desavenças. O país está dividido. Aparentemente mais da metade dos brasileiros elegeram seu presidente mais averso a equidade, e inclinado ao ódio. Nas ruas os gritos, palavras de ordem, pessoas que marcham sem sequer entender o significado de suas placas. Algo como "em defesa da família". Talvez não saibam os diversos conceitos de família.

Deus, essa dor de cabeça não passa! Abro os olhos e se passaram quatro horas desde que cheguei. Talvez eu não esteja me sentindo útil no dia de hoje, talvez eu não queira construir significado para as coisas. Deixo de me questionar. Entro no chuveiro, a água fria se funde ao meu corpo. Penso que preciso de um tempo. O celular toca, não atendo. Não tenho tocado no aparelho há quase uma semana. Me seco. Me visto. Ouço os gritos, de posição ideológica dividida tomando as ruas. Os jornais falam de confrontos. Eu não entendo a minha posição, deixo-a de lado, não me apetita a ideia de uma briga ideológica sem fim, mas penso no que posso fazer para melhor confortar as pessoas.

Preparo algo para comer. Penso em acrescentar bananas na lista de compras. Ligo a TV, pulo os canais indiscriminadamente, pato quando alcanço a voz da Fernanda Takai. A música que toca é conhecida. Eu ainda pense em nós, e não sei o que isso significa. O arroz está pronto, mas esqueci de aquecer a lentilha. Salada de repolho, talvez?

O telefone toca, não atendo. O deixo no volume mais baixo possível. Como assistindo o mesmo episódio de Friends. As janelas estão fechadas. Ouço os gritos diminuindo. Penso sobre meus privilégios, como posso usá-lo para ajudar alguém.

Já está tarde, penso. São quase onze da noite e a dor de cabeça não passa. Uso o mínimo de luz possível. Não sinto à vontade para tomar remédios, além do que já me convenceram a tomar. Os gatos estão quase que em sono profundo. Não é o melhor dia para levá-los a um passeio. Sinto o cheiro da terra quente se fundindo a água gelada. Será que ele também está pensando na chuva? Disperso. Me deito, fecho os olhos, durmo.

O telefone toca. Acordo. Desço as escadas sem pensar muito, ainda estou sonolento. Atendo. Algo sobre ter que ir ao Rio de Janeiro. Peço que me retorne em uma hora. Me arrumo, cuido dos gatos, eles parecem satisfeitos. Novamente o telefone. Atendo, é Aline. Aparentemente meus amigos precisam de mim, sumiram por duas semanas. Digo que preciso ir ao escritório, que preciso me organizar, mas que estarei no Rio de Janeiro assim que puder.

Consigo uma passagem custiada pelo escritório. Desembarco no aeroporto SDU, no centro do RJ. Aline e Goulart estão me esperando. Me levam até minha casa mantida no Grajaú. Apesar de não está sendo habitada, mantiveram a casa ao longo dos anos. Me disseram que Joan está entre os desaparecidos. Sou tomado por um sentimento desconhecido. Me contenho. Me explicam sobre seu envolvimento político na UERJ. Digo que temos que ir a OAB/RJ, mas que preciso contatar uma correspondente com influência na civil.

Não sinto fome, sede, necessidade alguma. Todo o meu corpo se empenha em encontrar meus amigos e Joan. Ligo para meu primo mais velho, consagrado meu padrinho na infância, talvez ele saiba de algo. Ele diz que amigos tem famílias, e que não é para eu me envolver com amigos, que há a necessidade de uma falta de tolerância. Não me estendo.

Mudo de roupa e vou encontrar meus antigos colaboradores, em um escritório na Avenida Beira-mar. Nada que possa me ajudar. OAB/RJ não se posiciona, diz que não há com o que me preocupar, qualquer movimento contra a ordem de direitos tomariam alguma atitude.

Faço buscas autônomas. Sou levado por diversas vezes a Santa Teresa. Nada! Me desespero. Acho que deixamos as coisas atropelarem nossas vontades, nosso desejo um pelo outro. Fecho os olhos e penso no sorriso, nos olhos amendoados, na alegria. Os sentimentos agora estão mortos. Me deixei enraizar em apatia. Talvez se eu tivesse insistido mais... Não. Não posso mudar o outro, curá-lo.

Dois meses se passam. As investigações não andam. Eu não o esqueço. Será que ele esqueceu de mim? Abro os olhos. Os gatos se acomodam entre minhas pernas. Hoje, a cidade de Nísia Floresta se confronta em gritos. Aparentemente foi eleito um presidente averso a equidade, e adepto do ódio. Quem sente?

Yuri Santos
Enviado por Yuri Santos em 30/10/2018
Reeditado em 01/11/2018
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