O Doce Sorriso da Rosa Escura

As estrelas dançavam para mim. Pareciam que estavam me esperando pacientemente pela chegada da noite e da minha. Era quando elas não se deixavam se inibir pelo sol e se sentiam à vontade com a minha presença. Como se elas fossem atrizes de uma cerimônia celestial e eu seria a sua única platéia.

O som do córrego que tocava ao meu lado servia como a orquestra das minhas queridas luzes. Os passos graciosos e leves que tocavam sobre a mole terra e a mata ciliar batiam nas orelhas com a mesma beleza de um vinho encorpado que corre pela boca.

O berço formado pelas várias linhas do gramado me abraçavam e sussurravam sobre os vários habitantes daquele campo. Corujas cintilantes cujas órbitas marrons observavam o meio natural como vigilantes incessantes. Pássaros apressados com um canto capaz de esconder todo o seu medo e preocupação. Vagalumes que desenhavam o breu da noite com suas minúsculas e simples luzes.

A árvore que fazia de travesseiro massageava o cabelo com seu suave tronco. Perfumava os meus sonhos noturnos com os cheiros que apenas a solidão poderia me proporcionar.

Um só gramado. Uma só árvore. Um só córrego. Um só berço. Um só eu.

Contemplo com alegria a companhia de mim mesmo. O silêncio derramado sobre o vasto campo limpo acobertado se torna um meio reacional para que as minhas várias ideias, pensamentos e reflexões sejam convertidas em longas conversas mantidas pelo meu espírito neste quarto apertado que é o meu corpo. Deixo meu calor se abster do tempo presente e patinar sobre os vários momentos os quais presenciei as diferentes linhas temporais que poderiam se desdobrar a partir da mudanças de míseros detalhes de lembranças distantes.

Após vários anos dentro da cabeça que se traduziam em minutos no mundo exterior, a minha tranquilidade foi sutilmente rasgada por um odor perigoso, porém sedutor. Um odor que coloca o coração para cavalgar e banha meu cérebro em curiosidade. Algo que poderia me colocar numa mesa com a Dama do Submundo, mas com um sorriso autêntico pintado sobre a pele e cimentado nos músculos.

Ordenei aos olhos para que rastreassem a fonte da qual saiu esse intrigante odor… E eles a encontraram. Dançando graciosamente sobre o calmo córrego. Cantando o seu canto no canto do seu recanto. Semeando o perfume no fértil ar.

Uma rosa.

Como algo tão bonito pode exalar um odor tão perigoso?

Me senti seduzido pelas notas que silvavam de seus desenhados lábios. Sua beleza clamava pela minha humilde atenção.

Saí do meu conforto. O corpo era uma arena onde se digladiavam o cérebro e o coração. Um deles queria me salvar, tal qual um anjo salvaria seu protegido do mal. E o outro queria me entregar ao mal. Queria me jogar ao alcance da sereia, mesmo que isso terminasse com meu iminente afogamento.

Sentei - me à margem do córrego. Coloquei a mão sobre a lâmina da água. Chamei - a pelo nome. E ela atendeu.

A rosa vermelho - escura deitou - se sobre a mão. Declarou estar maravilhada com a minha presença. Contou - me sobre seus sonhos. Seus medos. Suas esperanças. Seus traumas. Seu passado. Seu presente. Confidenciou - os à mim, seu único ouvinte. O ouvinte daquela rosa que pincelava a tela da sua jornada, e que parou por um breve instante para mostrar - me a obra de arte que representava a sua vida. Uma obra que poderia contemplar várias vezes sem cansar. Uma obra a qual queria integrar.

Por fim, deitei a rosa sobre a sua aquosa cama. Deixei ela continuar a tecer a teia na qual guarda os seus momentos valiosos para a sua obra, tal qual uma aranha. Ela agradeceu pelo tempo passado comigo. Retribui o elogio. E eu a vi indo embora. Cantando. Dançando. Tecendo. Pintando. Sorrindo. Sorrindo para mim. Sorrindo o seu doce sorriso.

Outra noite. Outra Lua. Outros sons.

Os atores da vida eram diferentes, mas o meu eu continuava o mesmo desde aquele encontro. Mesma voz. Mesma fala. Mesma cabeça. Mesmo desejo.

O desejo de reencontrar a rosa vermelho - escura. De ouvir seu canto. De ver a sua dança. De fazer parte de um único espaço em sua obra de arte.

Esperava pela sua chegada como leproso que espera a abertura dos portões do Reino Celestial. Não iria sentir nenhum incômodo com a presença dela. Pelo contrário. A presença dela era anestesia perfeita para os pavores e os horrores que parasitam o meu corpo. Uma sílaba proferida pelas suas cordas vocais os queimava como um forte vermicida.

Sentia o odor perigoso chegando perto de minhas impacientes narinas. Um perigo que não me amedrontava mais. Um odor o qual pudesse cheirar sem que o cérebro pudesse segurar as minhas rédeas. Um odor tão familiar para mim.

Narinas maravilhadas… E olhos aterrorizados.

Os globos oculares eram banhados com as mais salgadas lágrimas ao ver a chegada dela. Não eram de felicidade. Ou de alívio. Eram de tristeza. Desespero. Incredulidade.

Minha amada rosa. O corpo quebrado. O pétalas rasgadas. O acúleos cortados. O doce sorriso desfeito.

Cérebro e coração jogaram meu corpo à água. Queriam salvar aquela estrela caída. As mãos a abraçaram. A voz lhe ofereceu a ajuda necessária e até mesmo a não necessária. A bomba de sangue pulsava loucamente. O líder de todos derretia com a ansiedade. Estava prestes a me desfazer em pedaços.

Ela abriu seus lábios. Esperei um arquejo de socorro. E ela disse…

...uma negação ao meu pedido de ajuda. Admitia o seu sofrimento, mas não queria cortá -lo. Era uma toxina mortal, porém não a mataria. Apenas a fortaleceria. Fixaria suas ligações. Contribuiria para a construção da sua arte. Do seu ser.

Pediu para ser deitada sobre o leito aquoso. Sabia perfeitamente da tempestade escura no meu inteiro. Entretanto, ela pediu carinhosamente um pouco de fé. Um pouco de fé para aguentar aquele amargo remédio que a construía lentamente. Um processo fundamental, mas que não poderia garantir a permanência de suas cores vivas.

Relutante, concordei em deitá - la. E assim o fiz. Enquanto limpava o sal dos olhos, vi sua partida. Muda. Imóvel. Impotente. Quieta. Triste.

A luz do dia irradia sobre o rosto. O calor tempera o sangue dentro das artérias. Mãos e pés recuperando seus movimentos. Posso andar. Correr. Eletricidade sob as solas. Piso sobre a antes gelada grama. A terra é amaciada pelos meus brutos passos. O adulto frio, por um breve nascer do sol, cedeu seu corpo à uma alegre criança.

E por uma incrível coincidência, um bonito canto se abrigou nas orelhas internas. Um cantar bonito e inigualável, que adicionou mais algumas pitadas de felicidade à minha eufórica caminhada. Uma canto acompanhado de um odor antes estranho, porém agora mais que familiar.

Interrompi bruscamente a minha caminhada para mudar meu curso para o córrego onde ela se banhava. As regiões orbitais não tardaram em exalar suas lágrimas, pois lá estava a rosa. A rosa vermelho - escura. Cantando. Dançando. Tecendo. Pintando. Sorrindo. Sorrindo doce

Não há mais medo. Nem estranheza. Só o amor. O amor doce.

Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia)
Enviado por Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia) em 23/09/2018
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