Trópico de libra

Desde sempre, muito cedo eu tinha a percepção do lugar das mulheres na minha família. Sejam mulheres no gênero, ou por equiparação. E eu digo "por equiparação", tendo em vista que é esse o lugar em que os gays da minha família são colocados.

Os homens da família Costa, penduram seu brasão português no ponto mais alto da sala. Lá, o brasão ficará visível, mostrando toda a virilidade e força dos homens das costelas de prata. Mas desdo início dos tempos só há uma costela erguida nessa família. Meu avô, o patriarca da família, ele costuma se sentar embaixo do brasão localizado em seu sítio, no Mato Grosso, e contar que o Costa surgiu em Portugal e a sua primeira família era da nobreza medieval do século XIII. Ele é classificado como toponímico e vem do latim Costa que significa costela. Às vezes olho atentamente tentando descobrir que caminho ele quer tomar, alguma questão além do que posso compreender, auto afirmação? Não sei.

As mulheres da minha família vão além, em maioria esmagadora que são, pois meu avô só descendentes de primeiro grau todas mulheres, sem sequer apontar um menino, em sua totalidade, as mulheres da minha família sempre foram de frente. Tiveram carreira acadêmica, posições de destaque no trabalho, professoras universitárias, farmacêuticas, médicas, advogadas, filosofas, engenheiras, autônomas, diferente dos homens. Os homens da minha família se colocavam na posição de agregados, sem perspectivas, dependentes, e isso não só os mais velhos, mas os mais novos também. Visivelmente esperando as mulheres morrerem para aproveitarem o fruto do trabalho árduo das cônjuges varoas.

O que me causa curiosidade, é o fato de ser empurrado para essa função hereditária. Quando muito novo eu descobri a minha sexualidade. Minha mãe me perguntou "filho, você gosta de meninos?", então eu disse "sim, gosto". Não foi um momento muito feliz, mas o que mais me marcou de todas as falas foi a seguinte que ela exteriorizou: "Isso é uma opção sua! Você escolheu isso! Então agora vai ter que arcar. Você por ordem natural tem que ser independente. Você tem que ser o melhor, sempre! Por ser homem e ter essa escolha de vida, então você tem que ser independente o mais cedo possível!". Por que?

Minha mãe é uma mulher de falas feridas. Sua história dói, ela se cobre dela. A fala de minha mãe é mansa, carregada de lágrimas. Ela sempre fala como se estivesse pedindo desculpas e quisesse muito chorar. Ela implora, ela sempre implora. Quando tentava nos corrigir por algum problema ocorrido, ela implorava. Nós víamos a dor nos olhos da mãe, ela não escondia, queria que nós víssemos, e então dessa forma faríamos o que ela quisesse. Mas isso nunca ocorria. E foi assim que foi ensinada. Nada mudou até hoje.

Sempre fui categorizado como uma pessoa difícil, isso porque eu sempre disse não! E quando me perguntavam do por quê do não, eu dizia que, por pura simplicidade de não querer. Nunca quis jogar futebol, servir ao exército, participar de cultos jovens. Eu sempre dizia não. E era punido por isso. Me categorizavam como louco, sem importância, histérico, ou que eu quero ser uma mulher. Endemoniado! Nunca me importei.

O que me fez pensar na fala de minha mãe, foi quando no natal do último ano, meu avô, contou uma história de sua juventude sobre bater em uma prostituta para ela aprender a lidar com um homem. O que é ser homem? E como se lida com um homem?

Pego o telefone, ligo para o meu avô. Ele atende. Benção, Vô. Deus lhe abençoe, em nome de nossa senhora, meu filho. - Vô, o que é ser homem para o senhor? - o silêncio paira por alguns instantes. - Ser homem é ser homem, filho. Ter uma vida digna, respeito, ser homem... Por que isso, Yuri? Ser homem é ser homem.

-Vô, mas homem é gênero. Você não concorda que isso que o senhor me disse são coisas? digo, escolhas, objetivos, coisas de uma forma geral. Eu posso escolher não ter respeito, por exemplo. O respeito é uma estrutura baseada em práticas da moral de um determinado grupo social. Posso não querer praticar o que meu núcleo social, família, que seja... Posso não querer atender as expectativas de um determinado grupo social, e logo não adquirir respeito. Feito isto, não ter respeito me faz deixar de ser homem? Me tira o gênero? - Meu filho, está tudo bem?... O que são essas questões? - Vô, penso no quanto as mulheres de nossa família são maltratadas e principalmente colocadas em segundo plano. E os gays também estão na mesma situação. Os homens nos vê como se mulheres fossemos ou quiséssemos ser, e a condição de um homem querer ser uma mulher, que até então é um ser inferior, é algo abominável. Vejo o quanto minha mãe é sofrida, e ao mesmo tempo tão guerreira. Outro dia ela comentou comigo que recebeu uma cantada de um cara que lhe agradou, e isso a surpreendeu, porque segundo ela, ela não é bonita. E a tia Janaína, vô... Que casamento é aquele? Visivelmente ela se encontra em um movimento de prisão, de sufoco. Ela sempre foi tão livre. - Janaína tem doutorado, filho. Ela sempre quis isso, alcançou seu objetivo de vida. - Vô, da última vez que estive em Cuiabá, em um momento de embriagues na festa de natal, tia Jan se manifestou no sentido de não entender do porquê não consegue ser mãe. Ela disse para nós "Sou uma educadora. Eu sou doutora em educação. Eu ensino as pessoas a educarem seus filhos, e eu sequer sei o que é ser mãe. Eu não sei dizer não aos meus gêmeos, penso que é uma forma de compensar". Compensar?... O que isso significa, vô?

- Meu filho... é a vida.

Yuri Santos
Enviado por Yuri Santos em 24/07/2018
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