Dores do corte

Algumas pessoas estão excessivamente machucadas.

Quem você pensa que é? Quem é você!? - ela diz.

Domingo, segunda semana.

Me levanto, aparentemente há um dia bonito lá fora. A rua da Passagem é menos movimentada aos domingos, mas mesmo do oitavo andar posso ouvir as pessoas lá fora.

Reconheço que com a velhice adquiri certa sensibilidade ao som. Consigo ouvir os gatos brincando na sala. Sento na cama, te olho dormir. Dentro deste sono há uma inquietude. Acho que você está próximo de acordar, e falo em um sentido bem amplo, seja literal ou metaforicamente.

Você não abre os olhos, mas sabe que já estou acordado. Me procura com os pés, estica os braços me puxando para a cama novamente. Digo que tenho fome, você sabe. você me puxa para perto de você, me envolve com seus braços, faz dengo. Digo que preciso de um banho, que está um dia quente, que o quarto está quente, e que estamos suados. Você me pede para ficarmos deitados por mais algum tempo, abre os olhos, sorri. Deito sobre a sua pele, te arranco sorrisos. Você está no aqui e agora.

Perto das onze da manhã nos levantamos. Você ajeita as coisas que para você estão fora de lugar. Os gatos estão famintos, assim como eu. Penso que pode ser legal irmos comer em algum lugar. Você concorda. Tomo meu banho, você aparentemente está mais animado que nos últimos dias, mais seguro de si, suas palavras estão firmes e completas.

Saio do banho. Você comenta ter conversado um pouco com sua mãe, é aniversário do companheiro dela. Você não quer fazer qualquer coisa, quer ir em algum local próximo, "ficar por aqui", você diz. Penso que pode ser legal, apesar de me parecer mais certo você estar participando com sua família. Tento não pensar em porquês, nos dias, nas coisas, em nós. Penso no que pode ser confortável agora, no que estou sentindo, o que parece bom nesse momento sem atingir ninguém negativamente.

Você me pergunta se estou bem. Digo que sim. Você diz que pareci estranho por algum momento. Digo que preciso fazer óculos novos, que encontro certa dificuldade em enxergar e por isso faço caretas, na tentativa frustrada em melhorar a minha visão. Você sorri, me beija.

Descemos para explorar Botafogo. Paramos em um bar. Decisão final da Copa/2018. Pedimos uma cerveja. Pensamos que poderia ser bom para abrir o apetite. Consequentemente mais algumas. Duas pessoas pararam em nossa mesa, nos pediram comida. A primeira você estava presente, não hesitamos em dar algo para comer. Penso que nunca recusamos, que sabemos ber o que é estar necessitado.

Quando o segundo se aproximou você havia ido em casa pegar seus headphones. A frança ganhou a Copa de 2018, e você gostaria de ouvir música comigo. O rapaz de aparentemente quarenta anos de idade se aproximou, me pediu por comida. Eu não neguei. Ele me contou parte da história dele, pedreiro, pai de um natimorto. Você se aproxima e o vê. Se apresenta. Aparenta estar um pouco incomodado. Aos trinta e três anos e com algumas histórias, as pessoas criam desconfianças. Estou entre vocês. Você diz que irá comprar cigarros e se ausenta da mesa. Lembro de pensar que quando se levantou e sorriu anunciando a sua ausência, seu rosto corou por perceber que provavelmente eu estava te admirando. Você se inclina e me beija. Penso que você é muito bonito. Enquanto se afasta do meu rosto, seus olhos confrontam o sol. Seus olhos amendoados, quando confrontados pelo sol são possuídos por uma cor verde água. Te admiro em pensamento. Você sabe.

Você não demora muito, e consegue retornar no momento em que o rapa se vai. Ele nos agradece, diz que somos bonitos juntos, que parecemos felizes. Você se apoia em mim, se inclina e me beija novamente. Você se afasta e sorri. Penso que você pode estar feliz. Também estou. Penso que depois de algumas cervejas, e sem comer qualquer coisa, estou um pouco fora de mim. Você troca as musicas com o seus headphone compartilhado. Nos entendemos, nos desentendemos, e nos entendemos novamente. Tento manter meu espirito reto e inabalável. Algo está azul, mas está sendo tomado por uma nova cor. você parece tão verde. E eu estou feliz. Depois de mais algumas horas, você se vira e pergunta se podemos sair daquele lugar. Digo que sim. você diz segura a minha mãe e diz que quer me levar em um lugar. Saímos da Praia de Botafogo e entramos na voluntários da Pátria. Você me conduz até a Void General Store, vai de encontro a uma mulher. Você a apresenta, diz que se chama Ana. Diz que a Ana é vendedora, que você esteve naquele lugar, que ela o ajudou a escolher uma coisa. Você diz que viu algo muito especial para mim, que sou uma pessoa especial, que você se importa, que tenho te feito bem, que quer me dar algo especial. A Ana me olha atenta e sorridente. Você retira uma camisa de uma pilha de roupas. Diz que escolheu com muito carinho, que pensou em mim usando a camisa em diversos shows da minha banda. Eu me surpreendo com você pela primeira vez. Me sinto tomado de uma sensação de êxtase, que aparentemente vai se enraizar nesse momento.

Experimento a camisa, não consigo parar de sorrir. Pergunto se já posso sair usando-a, você não para de sorri, "claro!", você diz. As pessoas nos olham, ganhamos duas cervejas de brinde, nos sentamos. Não conseguimos parar de sorrir. Nos beijamos.

Algumas pessoas estão excessivamente machucadas nesse plano. A história nunca muda muito.

Decidimos finamente comer algo. Você quer me levar ao restaurante mexicano, na voluntários. atravessamos a rua, pedimos um taco. comemos. Caminhamos até a praia. Está um pouco frio por aqui, mas não há vento forte. Nos sentamos. Estamos bem. Não dissemos mais nada. você encosta em mim e dorme.

Ela aparece para mim. ela pergunta quem sou eu, o que eu quero aqui. Digo que precisamos ir a outro lugar para conversamos. Ela diz que não vamos ir a qualquer outro lugar. Ela ri, diz que estou com medo. Digo que não tenho medo, que o medo é um sentimento cujo significado me parece muito fraco, mas que entendo que é um sentimento legítimo como qualquer outro. Ela ri, diz que gosta de mim, que sabe que sou uma boa pessoa. Não penso sobre esses aspectos de uma forma profunda, mas penso que tudo é relativo, tendo em vista que há mais um olhar sobre uma determinada consciência.

Ela diz que somos iguais, que ele não vai dizer, mas está iludido por mim, que está empolgado, "ele gosta de você, mas tem medo. ele pensa em você, mas não vai te dizer isso", ela diz.

Alguns caminhos são pré determinados através de um destino, e outros se criam em constâncias ao longo de nossas vidas, por relações interpessoais, o que não é o de vocês. vocês estão no destino um do outro. Já parou para perceber o quão parecido é o momento que estão vivendo? foi necessário.

Não me importo, digo. Penso que o livre arbítrio me parece uma mentira. Ela ri. O que quer saber? - ela pergunta. Digo que não quero saber nada. O que você quer?, ela pergunta. Digo que quero seguir de forma natural, sem intervenções. Não busco uma relação, não busco o amor, não busco nada. Algumas coisas só devem acontecer de forma natural. Veja este rapaz, o quão machucado ele está. Não me parece justo ingressar em uma fantasia, não quero ser o motivo de alguém, e não quero que alguém seja o meu motivo. Eu me preocupo, gosto dele. O que eu quero com ele, minha senhora, a senhora quer realmente saber? Quero seguir, e quero que ele siga, quero vê-lo feliz. Quero poder ajudá-lo, mas também tenho medo. Estou confuso, estou apavorado! Não posso ir além do que nesse momento estou indo.

Ela ri. Você ainda pensa naquele outro, certo? - ela pergunta. Digo que não. O que quer que eu faça com ele? - digo que nada, que quero que ele apenas siga. Não tenho qualquer sentimento por ele. Ela diz que não preciso pedir, que ela sabe o que quero, e que ela vai fazer, que além de necessário, ela gosta de mim. Digo que ela faça o que for necessário, mas que não tenho interesse em apressar ou moldar nada. Peço que vá, que pretendo velá-lo para casa. Ela acaricia o meu rosto, me beija com as mãos. Se vai.

Ele acorda, me beija. Diz que estou gelado. Diz que sente muita fome. Digo que quero ir para sua casa, que está tarde, que pretendo descansar. Tenho frio. Ele me leva para a casa dele. Me envolve com um cobertor, e se envolve em mim. Me beija, diz que está tudo bem.

Algumas pessoas estão excessivamente machucadas.

Yuri Santos
Enviado por Yuri Santos em 17/07/2018
Reeditado em 19/07/2018
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